Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sempre o maniqueísmo facilitador

Ataques a delegacias, policiais mortos, tiroteios pela cidade, ônibus incendiados. Pânico e revolta da população. Essa é a situação extrema em que a cidade de São Paulo se viu por alguns dias. Claro que nem todas as áreas da metrópole foram palco da guerra urbana travada entre bandidos e policiais, o que leva a concluir que nem todas as pessoas presenciaram as cenas do conflito. Neste ponto, é importante lembrar dos agentes responsáveis por transmitir as informações indispensáveis à vida das pessoas. Sim, os jornalistas.

Pelos jornais soube que os ataques dos bandidos foram iniciados em represália a uma tentativa da polícia de neutralizar as ações de quase 800 dos mais perigosos bandidos ligados ao PCC. Paralelamente a este motivo, alguns outros foram apresentados, afinal de contas é um conjunto de fatos que faz a situação atingir as proporções que tomou, e não uma razão isolada. Os bandidos também queriam reaver os aparelhos de TV que compraram para ver a Copa do Mundo na cadeia e queriam poder sair da prisão no Dia das Mães – exigências que o governo se negou a atender.

Não fosse pela minha própria constatação da situação trágica em São Paulo, pensaria que algum descendente de Orson Welles virou assessor de imprensa e plantou esta pauta-pegadinha na grande mídia. A situação foi colocada como se a quadrilha maluca, Dick Vigarista, Lex Lutor, Pingüim e companhia não-limitada de vilões tivessem feito conchavo para atacar a metrópole.

Apenas personagens

O trânsito ficou bagunçado, o metrô, um caos, os ônibus não circularam. Só faltaram os sinais piscando luzes azuis, os hidrantes disparando jatos de água e o dirigível da Goodyear emitindo a voz de um chefão do crime anunciando o domínio da mente das pessoas.

Talvez essa minha impressão seja por conta de meu doentio imaginário de leitor de ficção. Mas o que é ficção? Os livros de Huxley e Asimov ou a grande imprensa brasileira? Acho que não entendi ainda qual a relação entre a espetacularização da vida e melhores relatos jornalísticos – deve ser uma das lições que ainda não tive, por enquanto só sou estudante de Jornalismo.

O fato é que não se abre mão de promover o espetáculo da guerra urbana. Quadros ilustrativos, estatísticas, perfis de policiais e bandidos, ilustrações do aparato bélico usado e do que ainda pode ser usado. Tudo apresentado como num filme do Van Damme ou do Chuck Norris, ou como num jogo de Playstation 2, que torna a imagem da ficção muito próxima da imagem do real. Mas é assim, eu já deveria saber. Um fato extraordinário deve ser representado de maneira correspondente, destacando-se dos outros assuntos. Essa lição eu já devia ter aprendido, pois sou da geração que passou a adolescência servida pela mídia pós-onzedesetembro.

Sempre tinha uma edição da Veja para eu ver no início da guerra do Iraque. Na sala do colegial, acompanhávamos semanalmente a ficha técnica e as ilustrações em 3D dos equipamentos bélicos dos americanos. O poder de guerra do EUA impressionava a qualquer um, chegava a ser uma ótima diversão imaginar aqueles aviões e tanques em ação, como nos filmes que crescemos vendo. Do lado iraquiano, a revista publicava a foto de gente na miséria, gente ferida. Diferente da imagem dos ianques, essa impressionava pelo choque, dando dó, pena, raiva. Num videogame, qual dos dois personagens você escolheria para jogar?

Regime de exceção

Sim, dois personagens. A mídia constituiu no início da Guerra do Iraque dois lados, um pelo bem e outro pelo mal, seguindo linha dualista na qual um pólo não interage com seu oposto, nem por ocupar o mesmo espaço nem por um influenciar a existência do outro. O mesmo ocorre na cobertura da guerra urbana: de um lado, os homens maus – os integrantes do PCC, mercenários, seqüestradores, ladrões e congêneres – e, de outro, os defensores da população e do aparato de Estado – os policiais e os governantes.

Os relatos não incluem a elucidação dos fatos. A complexa interação entre problemas e atores sociais é deixada de lado ao se reduzir, maniqueisticamente, a realidade. Como o crime organizado se desenvolveu nas costas da recriminação dos movimentos sociais pelos governos oficiais não é uma questão abordada pelos jornalistas nesta cobertura. Como o crime organizado se mantém garantido pela corrupção dos políticos e da polícia também não é nem questionado. Talvez fosse necessário pensar que os dois lados estão muito mais próximos, e mais interligados do que parece.

No máximo, a legislação e o Estado de direito são questionados como as raízes profundas do problema. Defende-se a ação em regime de exceção, para extermínio dos integrantes do PCC. Pronto, essa é a solução – pelo menos até uma nova guerra começar. Faz-se pressão sobre o Legislativo para que ‘medidas eficientes’ sejam aprovadas – como o aumento do tempo das penas e a redução da maioridade penal –, o que, por si só, diminuiria a criminalidade.

Dinâmica complexa

Faz-se de tudo para a população alinhar-se ao governo e endossar as políticas emergenciais conduzidas exatamente pelas mesmas pessoas que há anos ignoram a possibilidade de um caos social. Garantir a segurança da população compreende muito mais do que a polícia vencer os bandidos. Trata-se da formulação e aplicação de políticas públicas integradas, relevando-se as particularidades de cada parte do espaço heterogêneo da cidade e da demanda por mudanças dos diferentes grupos sociais, cada qual com suas particularidades.

Pensar o problema como resultado da interação dos diversos atores sociais pode ser um começo para se visualizar a questão em sua ampla complexidade e não reduzi-la a personagens de videogame disponibilizados pela mídia.

A cidade tem uma dinâmica complexa, que até pode ser representada com uma linguagem simples e clara, como pretende fazer o jornalismo. Mas, simplificar mudando a realidade implica distorcer informações e não contribuir para a solução dos problemas profundos da metrópole.

******

Estudante de Jornalismo da ECA-USP