Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

No surto de coronavirus, jornalistas podem ser antídoto ou veneno

(Foto: Divulgação)

Entre os meses de setembro e novembro de 2019, quinze pessoas morreram por sarampo no Brasil: cinco mortes aconteceram na cidade de São Paulo e as outras em Osasco, Francisco Morato, Itanhaém, Itapevi, Franco da Rocha, Santo André, Limeira e Pernambuco. Oito das vítimas dessa doença evitável – e que já não existia no país graças às vacinas – eram crianças de 1 ano de idade ou menos.

Essas perdas, que destruíram famílias brasileiras, não tiveram nem de longe a cobertura do surgimento do vírus 2019-nCoV na cidade de Wuhan, na China, nas últimas semanas. O novo coronavírus foi, e continua sendo, o principal assunto dos noticiários e das manchetes de jornal. Um vídeo do doutor Drauzio Varella sobre coronavírus, por exemplo, bateu um milhão de visualizações em apenas três dias. “Isso mostra que as pessoas estão ávidas por informação”, postou nas redes sociais Mariana Varella, filha do médico, editora e jornalista especializada em saúde. “Nessa hora, é preciso cautela para evitar alarmismos desnecessários.”

Os fatos

Cientistas e autoridades de saúde do mundo todo estão correndo para deter a propagação do novo vírus que causa doenças respiratórias. Desde o dia 30 de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto viral como uma “emergência de saúde pública de preocupação internacional”. Mas o que significa “emergência”? É um alarme que a OMS reserva para eventos que requerem uma resposta internacional coordenada.

Essa ação coordenada facilita disposições políticas e dá impulso a outras decisões. Algumas são relativas a viagens, isolamento de pessoas ou alocamento de recursos. Menos conhecido é que as principais editoras científicas do mundo, por exemplo, logo concordaram em compartilhar de forma gratuita informações sobre o novo vírus. De outra forma, esses dados estariam escondidos por trás dos paywalls.

Foi assim que, aos poucos, dados cruciais sobre o vírus e como ele se espalha estão sendo conhecidos. Como destaca a jornalista Cláudia Collucci na Folha de S.Paulo, “nunca um vírus foi tão rapidamente identificado por sequenciamento genético e seu genoma compartilhado com a comunidade científica internacional. Nunca uma cidade de onze milhões de habitantes foi colocada em quarentena. E uma nova vacina pode ser desenvolvida em tempo recorde”.

Nosso trabalho

O vírus oferece uma oportunidade única de refletir sobre o nosso trabalho e tentar executá-lo com mais qualidade. Repórteres cobrem surtos de doenças infecciosas desde sempre: algumas vezes de forma responsável, outras nem tanto. Por um lado, há um jornalismo sério que contribui para o conhecimento e a saúde pública. Por outro, há o repórter sensacionalista que apenas deseja caçar cliques.

O jornalista científico Carlos Orsi, editor do Instituto Questão de Ciência, descreveu a situação como “ciclo perverso”: “a cobertura incessante, pelo jornalismo profissional, gera um senso de urgência e alimenta uma curiosidade do público que, na ausência de fatos novos, não encontra alívio ou satisfação, mas redundância e tédio. Esse estado de coisas insufla rumores que, por sua vez, justificam a reiteração redundante do que já se sabe – para ‘combater os boatos’. E o círculo se fecha”.

Esse tipo de cobertura tem vários malefícios, como destruir a confiança nos cientistas e nas autoridades sanitárias. A própria OMS está muito preocupada com o que chama de “infodemia” (informação + epidemia). “O surto e resposta ao 2019-nCoV foi acompanhado por uma enorme ‘infodemia’ – uma enorme abundância de informações, algumas precisas e outras não, o que dificulta o trabalho de encontrar fontes confiáveis e orientação confiável quando necessário. Em sua sede em Genebra, seus seis escritórios regionais e seus parceiros, a OMS está trabalhando 24 horas por dia para identificar os rumores mais prevalentes que podem potencialmente prejudicar a saúde do público, como falsas medidas de prevenção ou curas.”

Cientes de que as fake news se disseminam mais rápido que as doenças, pelo menos 48 organizações de checagem de fatos de trinta países trabalham para desmascarar informações falsas sobre o novo coronavírus. O projeto colaborativo, coordenado pela Rede Internacional de Checagem de Fatos, promete estar ativo enquanto a doença se espalhar pelo mundo. Pode ser seguido nas redes sociais através de duas hashtags: #CoronaVirusFacts e #DatosCoronaVirus.

Mas, às vezes, pode ser tarde demais. A epidemia de zika em 2015 e 2016 e o surto de febre amarela em 2018 no Brasil foram estudados recentemente por pesquisadores estrangeiros. A análise publicada no periódico Science Advances ilustra como se espalham as teorias conspiratórias sobre doenças, apesar das tentativas do Estado de corrigir a desinformação.

Escrevemos para nossos leitores? Falso

Os jornalistas devem ser treinados e motivados para trabalhar como mediadores entre fontes rigorosamente científicas e a população para informar o que pode ser de interesse público. Isso nem sempre acontece: quantos dos que noticiaram o aumento das vendas de máscaras informaram realmente o que é do interesse do público? De forma concreta, quantos destacaram que a máscara não protege do coronavírus, que não está suspenso no ar, mas é um ato solidário utilizar a máscara quando se está com sintomas de infecção respiratória para cuidar dos outros? A máscara serve para que a pessoa que a colocou não dissemine os vírus. A pergunta certa ao profissional certo daria um bom serviço ao público geral.

Nós, jornalistas, legitimamos nosso trabalho acreditando que influenciamos positivamente na saúde das pessoas. Para isso, é preciso investir no conhecimento das doenças e também dedicar um tempinho para entender os números.

O médico Luis Correia, professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina e diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidências, divulgou essa informação tão necessária pelas redes sociais: “As enfáticas medidas de saúde pública são tomadas para reduzir a probabilidade da doença se alastrar de forma indesejável. Mas o equívoco cognitivo surge quando essas medidas, por serem disseminadas, trazem a conotação inadequada de que indivíduos estão sob alto risco… Já sabemos que o risco de morte por coronavírus na China é 1 em 7 milhões. Pesquisei e encontrei que o risco de uma queda fatal de helicóptero é 1/250.000 (passeios-hora). Portanto, precisaríamos fazer 28 viagens à China para igualar o risco de morte em um despretensioso passeio turístico de helicóptero”.

Correia explica também que a probabilidade de uma epidemia se instalar não é a mesma da probabilidade de uma pessoa ficar doente, muito menos dessa pessoa morrer da doença. “Ao pensar individualmente (sentimento de medo), devemos racionalizar risco e dano.” Ele é enfático sobre a responsabilidade da imprensa: “quando se trata de medo ou pânico, cabe a tutores da percepção sobre questões de saúde aproveitar a oportunidade e alfabetizar cientificamente a sociedade”.

As doenças infecciosas estão de novo assombrando o mundo. As antigas voltam e novas continuarão a aparecer. Então é melhor estar bem preparado.

Se você é jornalista e precisa fazer cobertura de um assunto de saúde, capriche. Antes de colocar as mãos no teclado ou ligar a câmera, é importante se familiarizar com conceitos epidemiológicos básicos, como período de incubação, transmissão e contágio, prestando muita atenção aos números. Se tiver oportunidade, pode até dar aulas de etiqueta. Se tiver tosse, mantenha distância dos outros e cubra pigarros e espirros com tecidos descartáveis ou roupas. Porém, caso não encontre tempo para uma preparação básica antes de noticiar um surto, divulgue simplesmente as recomendações universais para não errar: “tenha a caderneta de vacinas atualizada e, pelo amor de Deus, lave as mãos”.

Se você é jornalista de ciência, o momento é de aproveitar a preocupação geral e usar toda a sua criatividade. Mostrar a importância da formação dos cientistas e dos médicos, do desenvolvimento da ciência e de responsabilidades do Estado, como a vigilância epidemiológica. Uma dica: no Brasil, existe uma diversidade muito grande de coronavírus na natureza. O laboratório de virologia no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB USP) já identificou quinze variedades silvestres em intestinos de oito espécies de morcegos que podem causar problemas se transmitidas para as pessoas. “Embora ainda não tenham ocorrido registros de infecções causadas por CoV de morcegos em pessoas em nosso país, mesmo assim temos de ficar alertas e intensificar o monitoramento de vírus emergentes em animais silvestres” escreveu Edison Luiz Durigon em nota divulgada pela Sociedade Brasileira de Microbiologia.

Logo no início da crise informativa relacionada ao novo vírus, o pesquisador e comunicador da ciência Atila Iamarino, conhecido pelo canal de YouTube Nerdologia, postou nas redes sociais: “Sabe o que é mais irônico sobre o coronavírus? Até o surto de SARS em 2003, quase ninguém estudava coronavírus no mundo. De repente, se tornou importantíssimo. Até 2014, o trabalho em que participei sobre zika vírus na África era um estudo sobre um vírus que mal circulava lá. Quando pensamos que só se deve financiar pesquisa sobre algo importante, estamos esquecendo de um ponto sério. Não sabemos muito do que é importante em ciência até aquilo se tornar importante. Parte do que prepara uma nação para responder em uma emergência dessas é estar preparado para o inesperado. O que é um paradoxo. Mas estudar o que não é ‘importante’ pode dar ferramentas muito úteis nessas horas. E a infraestrutura para esse tipo de solução não surge do nada. Depende de pessoas capazes se formando, trabalhando, desenvolvendo infraestrutura. Até a resolução de um surto desses, no melhor dos cenários, ainda precisa de ciência saudável sendo feita desde muito antes. Assim como você vai ter que se proteger lavando as mãos, evitando contato, um país se protege com a mão de obra e a infraestrutura qualificada”.

Não há dúvida: a promoção da ciência e da saúde brasileira tem muito a ganhar com o coronavírus, associando-se adequadamente à mídia.

Escrevemos o rascunho da história? Falso

Um exercício de humildade seria pensar que a mídia simplesmente produz notícias para satisfazer um instinto humano básico: a curiosidade. Ou que o papel do jornalista não é melhorar o mundo, mas apenas escrever o rascunho da história. Se for o caso, há evidências de que não estamos fazendo isso direito.

História não é o que as redes sociais nos fazem acreditar, aquele assunto de que todos falam. História é o que realmente acontece.

O fato é que, segundo descrevem os especialistas, mostramos o mundo muito pior do que é. Um grupo de jornalistas de dados que tem o objetivo declarado de fornecer uma visão geral do mundo em que vivemos baseada em fatos, chamado Our world in data, já tinha advertido com um exemplo contundente: “Há uma desconexão entre as causas de morte e a cobertura delas na mídia. (…) Esperamos atualizações de notícias com frequência crescente e os canais de mídia têm incentivos claros para entregar. Isso nos bloqueia em um ciclo de expectativa e cobertura com um forte viés para eventos mais estranhos. A maioria de nós fica com uma percepção distorcida do mundo; achamos que o mundo é muito pior do que é”.

O jornalismo tem o dever de mostrar a realidade. Portanto, o jornalismo existe para mostrar o que alguém quer ocultar. Mas fazer jornalismo investigativo é bem distante de alimentar crenças conspiratórias. A informação interfere em desejos, medos e valores. Há evidências de que a exposição a teorias conspiratórias reduz a intenção das pessoas de tomar medidas para se proteger de doenças transmissíveis e/ou reduzir o apoio a políticas projetadas para conter epidemias. A divulgação de crenças conspiratórias é, portanto, potencialmente perigosa durante emergências de saúde.

O vírus do terror: informação de entretenimento ou espelho da sociedade?

O diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse: “É hora para fatos, não para o medo. Para a ciência, não para rumores. Para a solidariedade, não para o estigma”. Mas a realidade é outra e está mais perto do que o jornalista científico britânico Ed Yong descreveu na The Atlantic. No texto, ele apresenta o novo coronavírus como uma epidemia verdadeiramente moderna: “Novas doenças são espelhos que refletem como uma sociedade funciona – e onde ela falha. No novo coronavírus, vemos um mundo mais conectado do que nunca por viagens internacionais, mas que também sucumbiu ao crescente isolacionismo e xenofobia. Vemos um momento em que a pesquisa científica e a demanda por notícias, a disseminação da desinformação e a propagação de um vírus acontecem todos em um ritmo implacável e acelerado. A nova crise é o tipo de epidemia que devemos esperar, dado o estado do mundo em 2020”.

Se você é leitor, a recomendação é simples: é muito bom estar informado do que acontece no mundo, mas leia os jornalistas que não contribuem com o pânico. E, claro, nunca se esqueça de lavar as mãos.

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Roxana Tabakman é jornalista científica, autora de A Saúde na mídia, medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (Summus) e diretora de conteúdo e parcerias da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência).