Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Prioritária, cobertura sobre impacto das cheias do rio Madeira reflui na seca

Publicada pela Folha de S. Paulo no dia 23 de junho e republicada sem o devido crédito à fonte pelo Diário da Amazônia e pelo Correio de Notícias, ambos jornais líderes de Porto Velho, a notícia “Corpo de ativista é achado no lago da usina Jirau” voltou a chamar a atenção da capital de Rondônia para um tema crítico – o impacto socioambiental das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no município. Conforme a Folha, cuja matéria foi plagiada pelos dois jornais locais, o corpo da pescadora Nilce de Souza Magalhães, ativista do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), foi encontrado no lago da usina com mãos e braços amarrados a pedras pesadas.

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Segundo a Folha, o representante do MAB Guilherme Weimann disse: “difícil afirmar exatamente o que houve, mas ainda que indiretamente, o verdadeiro culpado pela morte é a construção das barragens, da forma como foram construídas.” O MAB emitiu uma nota em que diz que “as investigações da polícia civil não têm sido claras” e lamentando “manifestações equivocadas expressas amplamente na mídia,” sem esclarecer o que considera equivocado. O Observatório da Imprensa tentou ouvir as usinas de Santo Antônio e Jirau sobre o caso, mas não obteve retorno.


Leia mais:

A visão da usina de Santo Antônio

A visão de Marcelo Freire, editor-chefe do Diário da Amazônia, líder em Porto Velho;

A visão de João Marques Dutra, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB);

A visão de Raphael Luis Pereira Bevilaqua,  procurador da República em Rondônia;

–  Usinas acabam com deficit energético, mas impacto socioambiental ainda é incógnita.


 

A questão do impacto socioambiental das usinas de Santo Antônio e Jirau – que engloba também a suposta correlação entre o barramento duplo do rio Madeira e a mudança de seu regime hídrico – é um tema de interesse público prioritário para Porto Velho. Desde a grande enchente de 2014, a maior num século, que ribeirinhos, autoridades, cientistas e ambientalistas se questionam a respeito.

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Inauguradas respectivamente em março de 2012 e setembro de 2013, as usinas de Santo Antônio e Jirau foram erguidas rio acima de Porto Velho ao longo da última década. Mesmo antes da construção delas, o rio que nasce nos Andes bolivianos e desce acelerado pela planície amazônica já era célebre pela fúria de suas águas, que arrancam árvores e provocam a erosão nas margens.

A enchente e as barragens

No verão de 2014, a cheia que inundou a zona urbana de Porto Velho e comunidades ribeirinhas como São Sebastião mereceu fartas manchetes locais. A despeito de falhas editoriais graves como plagiar notícias, não ouvir os vários lados da história e de publicar na íntegra releases – os textos enviados por assessorias de imprensa – como se fossem suas próprias reportagens, os veículos locais fizeram uma ampla cobertura sobre a gravidade da enchente e os impactos sofridos pela população e pela economia do município.

Nesse sentido, jornais líderes como o Diário da Amazônia, o Correio de Notícias e o site noticioso Rondônia ao Vivo exerceram o papel de informar a população sobre os impactos imediatos da enchente. Nessa tarefa, os veículos locais também reportaram sobre evidências que associavam a elevação recorde das águas às usinas. Em 12 de fevereiro, por exemplo, o Rondônia ao Vivo publicou uma matéria sobre o fechamento emergencial do porto Cai N’água, importante terminal de abastecimento do município e de transporte de passageiros.

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Numa entrevista em vídeo, o diretor do porto Vladmir Brutzel relatava o “estranho comportamento da água, o que não é normal, e grande volume de madeira e troncos (…) e a gente decidiu desde ontem tomar esta medida de interditar o porto.” Em 7 de março, o mesmo jornal deu como manchete um release, um texto enviado pela assessoria de imprensa do Ministério Público Federal (MPF): Cheia – MPF MPE e OAB/RO entram com ação contra usinas do Madeira por ignorarem impacto das enchentes. Através de uma ação civil pública (ACP) liderada pelo MPF, exigia-se que além de socorrer emergencialmente as mais de 1 300 famílias desabrigadas, os consórcios responsáveis pelas usinas – a Energia Sustentável do Brasil (ESBR), de Jirau, e a Santo Antônio Energia (SAE) – refizessem os estudos de impacto ambiental.

Fora de foco

Mais de dois anos depois, as águas do Madeira refluíram, assim como a cobertura local sobre o impacto e causas das cheias. Indagado pelo Observatório da Imprensa sobre o andamento da ação civil pública que lidera, o procurador do Ministério Público Federal em Rondônia, Raphael Luis Pereira Bevilaqua, disse que apesar dos estudos de impacto ambiental, os chamados EIA-RIMA, estarem sendo refeitos pelas usinas, eles não contam com o custeio dos especialistas indicados pelo MPF. Também indagado sobre a cobertura da imprensa, Bevilaqua disse que ela “foi razoável na época da tragédia, mas ela [a cobertura] é sufocada pelo noticiário nacional e pela política local.”

Segundo o editor-chefe do Diário da Amazônia, Marcelo Freire, o jornal segue “uma linha editorial independente, divulgando todos os segmentos da sociedade, cumprindo a rigor os ditames da imparcialidade que rege a imprensa.” Controlado pela família Gurgacz, do senador Acyr Gurgacz (PDT/RO), o jornal integra uma rede de veículos que inclui uma emissora afiliada da rede RedeTV! e estações de rádio, como uma afiliada do grupo Globo. A propósito, a Constituição proíbe que parlamentares detenham concessões de radiodifusão. O Observatório procurou também o Correio de Notícias e o Rondônia ao Vivo, mas não obteve retorno.

Ainda segundo o procurador Bevilaqua, os consórcios de Jirau e Santo Antônio não têm cumprido integralmente suas obrigações socioambientais: “diversas comunidades remanejadas, por exemplo, não estão conseguindo reerguer seus padrões de vida anteriores, diversas compensações para pescadores, garimpeiros manuais, populações ribeirinhas e indígenas não foram implementadas.” A propósito, no último dia 21 de junho, o MP de Rondônia obteve uma sentença favorável contra a usina Santo Antônio, para que ela indenize e reassente parte dos moradores afetados pela cheia na localidade Joana D’Arc. O release do MP foi publicado pelo Rondônia ao Vivo.

O Observatório procurou os consórcios de Jirau (ESBR) e Santo Antônio (SAE) através de suas assessorias de imprensa. A SAE, cujos sócio são Furnas, Caixa FIP Amazônia Energia, Odebrecht Energia do Brasil, SAAG Investimentos e Cemig Geração e Transmissão, enviou sua resposta por e-mail:

“A Hidrelétrica Santo Antônio não possui qualquer relação com a cheia histórica ocorrida em 2014, decorrente, de acordo com institutos especializados, das chuvas nas cabeceiras do rio Madeira. Como empresa estabelecida em Porto Velho e com forte parceria com a sociedade local, a Santo Antônio Energia  prestou apoio humanitário à Defesa Civil Municipal para o atendimento às famílias desabrigadas. Foram entregues mais de quatro mil cestas básicas, cerca de 30 mil litros de água mineral, mais de 13 mil litros de combustível e mais de 13 mil quilos de carne. Além disso, disponibilizou caminhonetes, caminhões baú, caminhões para mudança, materiais de apoio como impressoras e rádios comunicadores e ainda duas embarcações para o resgate de famílias no Baixo Madeira” (veja texto na íntegra em A visão da usina de Santo Antônio).

O consórcio de Jirau tem como sócios os grupos Suez Energy, Eletrosul, Chesf e Mitsui.

Assoreamento

A suposta correlação entre o aumento das enchentes e as barragens continuou a merecer a atenção da imprensa de Porto Velho no segundo semestre de 2014. Publicada em 6 de agosto pelo Diário da Amazônia, a matéria Impactos causados por enchente em discussão trazia uma declaração do prefeito Mauro Nazif (PSB) responsabilizando as usinas pela enchente.

“Conforme Mauro Nazif, a maior preocupação da gestão municipal é com os riscos de uma nova enchente de grandes proporções e com o desbarrancamento das margens do rio Madeira, por conta da construção das hidrelétricas. ‘O rio está assoreado e todo beiradão comprometido com várias estruturas abaladas. Por que antes as águas baixavam logo, e agora não?’, indagou.”

Já em 9 de setembro de 2014, o Correio de Notícias cobriu uma audiência pública realizada pela prefeitura para ouvir moradores da Vila Abunã sobre a possibilidade de transferi-los definitivamente do lugar. “Na visita, observou-se a existência de uma área mais fortemente impactada, formada por um grupo de casas muito próximas à beira do rio, conhecida como CCO.”

Mitigação e segurança

Segundo a cobertura local ao longo de 2015, as autoridades seguiram cobrando as usinas em dois fronts: o da mitigação dos impactos da cheia de 2014 e a divulgação de um plano conjunto de segurança das usinas de Jirau e Santo Antônio. Tal plano visa prevenir riscos futuros de agravamento das enchentes e até, no pior cenário possível, promover a evacuação da população no caso de rompimento das barragens.

Conforme a matéria Usinas manifestam-se sobre o plano, do Diário da Amazônia em 16 de julho do ano passado, as usinas emitiram notas justificando-se por não divulgarem o plano de segurança. Dizia o texto:

“Na nota, a Santo Antônio Energia lembra que todos os empreendimentos hidrelétricos são obrigados, por lei, a ter um plano para situações de emergência. A direção da Santo Antônio adiantou que o plano já existe, mas não foi entregue ainda porque aguarda regulamentação pela Agência Nacional de Emergia Elétrica (Aneel), da Lei 12334.

(…) Assim como a usina de Santo Antônio, a Jirau também afirma que o agente fiscalizador do setor elétrico brasileiro, a Aneel, está em processo de regulamentação da Lei 12.334/10 que estabeleceu a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), inclusive para definir o escopo do Plano de Ação de Emergência (PAE).

Tão logo esta regulamentação seja concluída, não somente a Energia Sustentável do Brasil, mas todos os empreendedores do setor elétrico serão informados pela Aneel, para disponibilizarem seus respectivos planos da forma adequada ao que determina a legislação vigente. A Energia Sustentável do Brasil informa ainda que plano de evacuação de emergência é atribuição da Defesa Civil, conforme legislação que regulamenta o órgão.”

Efeito Mariana

Em dezembro de 2015, pouco mais de um mês após o rompimento da barragem de Mariana, e mais de cinco anos após a aprovação da lei que criou a política de segurança das barragens, a Aneel publicou o decreto de regulamentação a que os consórcios de Jirau e Santo Antônio se referiam.

Uma inspeção da defesa civil municipal nas usinas foi o tema da matéria Segurança nas usinas é vistoriada do Diário da Amazônia em 12 de janeiro de 2016. Após as visitas de fiscalização, Vicente Bessa, secretário da defesa civil disse: “saímos dessas vistorias impressionados com o monitoramento constante que elas possuem de suas barragens e de suas capacidades de previsão com relação ao comportamento do clima, monitoramentos de chuvas e do nível e densidade dos rios da região. Cada usina possui diversos equipamentos com grande precisão de medição.”

A prosseguia informando que “a Usina de Jirau já concluiu seu plano de segurança e a Usina de Santo Antônio ainda está em fase de conclusão. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) divulgou no dia 26 de dezembro que quer brevemente unir os dois planos para apresentar um plano unificado de segurança.”

Segundo o secretário Bessa, o plano conjunto de segurança vinha sendo cobrado há dois anos: “o rio Madeira está subindo rapidamente e a cor muito marrom da água indica que muitos detritos estão se deslocando dos Andes”.

Mas de acordo com o Rondônia ao Vivo, Santo Antônio não havia cumprido com a exigência até o dia 4 de fevereiro de 2016. É o que informa a matéria RISCO? – MPF recomenda que Santo Antônio divulgue plano de segurança de barragem. Segundo o texto, o MPF havia dado à usina um prazo de vinte dias, já então expirado. Para o MPF, a cobrança pelo plano de segurança se justificava em função de “modificações dos projetos inicialmente apresentados dos aumento do reservatório da Usina de SAE, sem a realização de estudos ambientais novos e suficientes.”

A usina de Santo Antônio manifestou-se através de uma nota para a Rádio Agência Nacional, do sistema EBC. Na reportagem de 12 de fevereiro, a usina alegava que “a aplicação da Lei da Política Nacional de Segurança de Barragens para o setor elétrico foi regulamentada pela Aneel apenas em dezembro do ano passado.”

Ainda segundo a usina, “a Santo Antônio Energia afirmou que já iniciou a elaboração do plano e apresentará o documento dentro do prazo estabelecido pela Aneel que é dezembro de 2017.”

Princípio da precaução 

Já no dia 14 de junho, o Rondônia ao Vivo, cujas manchetes políticas sugerem clara simpatia pelo governador Confúcio Moura (PMDB), publicou uma matéria sobre a suposta demora no trâmite de um processo contra Acyr Gurgacz no Supremo Tribunal Federal (STF). A população de Porto Velho só teria a ganhar se a imprensa local dedicasse o mesmo nível de escrutínio para o regime hídrico do rio Madeira.

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Diogo Magri, Fernanda Giacomassi e Victória Damasceno são alunos da disciplina de Ética, da Graduação em Jornalismo na Escola de Comunicações e Arte, da Universidade de São Paulo.