Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A Corrupção da Linguagem

(Foto: Alan Santos/PR)

Em tempos de restrição máxima, saí de casa para comprar comida e reparei, em várias lojas fechadas, cartazes escritos a caneta onde se lia variações da frase “Todo serviço é essencial para quem vive dele”. O bordão, que tem sido usado por pessoas para contestar as medidas adotadas por governadores, faz parte de um arsenal argumentativo que se baseia em falácias lógicas, cujo objetivo é fornecer às pessoas comuns meios de contra-atacar os governos locais com frases prontas.

Analisada no vácuo, não há nada de errado ao dizer que “todo serviço é essencial para quem vive dele”. Mas é impossível pensar nestas palavras sem lembrar que o governo, em 2020, tentou alterar o conceito de serviço essencial para incluir atividades que não são urgentes. O fato de irmão do presidente Bolsonaro ser o dono de um estabelecimento privilegiado por tais medidas, não custa ironizar, é apenas uma feliz coincidência.

A corrosão causada por essa declaração fica mais evidente quando a analisamos junto com o conjunto da obra. Desde o início da pandemia, o governo federal tenta minimizar os efeitos da doença, dando à crise sanitária alcunhas eufemísticas como “gripezinha” (mais sobre isso em breve), boicotando medidas restritivas e — pasmem — atrasando de propósito o fornecimento de vacinas.
Infelizmente, há quem acredite nesse discurso e, sob o ponto de vista de que o que está acontecendo no Brasil é apenas exagero de “governadores comunistas”, dizer que todo serviço é essencial é uma progressão natural da narrativa. Há uma conclusão clara que deve ser observada aqui: esta mesma frase não teria este efeito se fosse pronunciada em abril de 2020.

Só que a manipulação da opinião pública não atinge este grau de corrupção da noite para o dia — e, embora mapear as origens deste fenômeno esteja além do escopo deste artigo, nos convém explicá-lo. Segundo o linguista Ferdinand de Saussure, um dos requisitos necessários para a comunicação é a existência de um código em comum que permita a transmissão de informações. Normalmente, associamos tal código à linguagem (embora possamos incluir outros tipos de comunicação não verbal), porém chegamos a um ponto em que esta definição não é mais suficiente para descrever o fenômeno.

É como se duas pessoas de grupos sociais diferentes, ao verem uma rosa, gritassem ao mesmo tempo tanto “é uma margarida” quanto “é uma orquídea”. É fácil para nós, que analisamos o cenário de fora, apontar o erro de ambos os lados. Só que isso não faz sentido quando nos damos conta de que cada uma destas personagens faz parte de um grupo social em que a rosa tem outro nome.
Tentar explicar esse erro para qualquer um desses grupos é difícil, porque eles não estão interessados em mudar sua forma de falar para agradar a terceiros. A rosa, já dizia Shakespeare, teria o mesmo perfume mesmo se seu nome fosse outro, só que aqui não discutimos o significado do signo e sim seu significante.

Ninguém travou guerras linguísticas por causa do nome de flores, então vamos transferir este exemplo para o campo da política e encontraremos definições diferentes para palavras como “comunista” e “neoliberal”, dependendo do espectro político em que nossos atores se posicionam. Normalmente, em nossa sociedade polarizada, estas pessoas não costumam interagir, mas quando membros de um grupo leem material escrito por integrantes do outro, as ideias que as palavras deveriam transmitir são corrompidas ao chegarem no receptor justamente porque, para ele, elas se referem a conceitos totalmente diferentes.

O uso político da corrupção da linguagem

Mas não nos deixemos cair em tentação de criticar as falácias passadas, uma vez que, enquanto conversamos, novas e mais absurdas são criadas. Há um método por trás de tanta loucura e, infelizmente, pouca disposição em expô-lo. Em uma live transmitida no dia 12 de março, o presidente Bolsonaro voltou a negar que tenha em qualquer momento chamado a pandemia de “gripezinha”.

Falas como essa tem três efeitos: em primeiro lugar, elas chamam a atenção de quem discorda do presidente, convocando-os ao confronto direto, que é tudo o que o ator político deseja. Na era das palavras que não significam o que elas significam, discursos oblíquos são ditos porque, no fim do dia, não é bem assim.

Bolsonaro não disse “a covid-19 é uma gripezinha” e sim “não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”. Qualquer análise de discurso honesta deixa claro a intenção, mas sempre restarão aqueles que acreditam de coração que a imprensa está tirando as declarações de contexto porque é inimiga do presidente.

Em segundo lugar, ela faz com que nós, jornalistas, corramos em direção a nossos arquivos, desesperados em conseguir o contraponto, para depois anunciarmos em nossos veículos títulos como “Bolsonaro mente ao dizer que não chamou covid-19 de ‘gripezinha’; ouça”.

Depois, com o peito estufado, o jornalista, ciente de que pegou o presidente na mentira, vai dormir sem perceber que aquela é uma tática simples de cortina de fumaça. Ao acordar, não vê que quem odiava o presidente continua odiando e quem o apoia tem cada vez mais certeza de que a mídia pega no pé de seu herói de turno porque não há mais corrupção no governo (segundo o governo).

Em tempo, antes de choverem as críticas dos coleguinhas, é claro que nossa função é veicular estas informações. A crítica aqui é em relação ao peso que damos a elas. Negar a gravidade da pandemia é algo que o presidente faz há um ano, não necessariamente uma novidade. Frases como essa são ditas justamente porque resultam em títulos fáceis e autoexplicativos e servem para esconder uma ideia mais complexa e difícil de ser condensada em 70 caracteres.

Na prática, isso significa que teremos que usar outros recursos para atrair o leitor e, enfim, explicar no texto porque o argumento é falacioso, sabendo que na era das redes sociais ninguém lê além do título e qualquer deslize ou ideia mais complexa pode ser tirada de contexto e usada contra você. Já aconteceu comigo e já aconteceu com muita gente.

A lição que temos que tirar, enfim, é que nenhuma frase de efeito dita por políticos é acidental — há método, afinal — e, antes de ceder à tentação de divulgar a barbaridade da semana, convém pensar justamente naquilo que estamos deixando de apurar e publicar porque usamos nosso tempo para dizer o óbvio. Divulgar os fatos é nossa obrigação, mas isso não significa que tenhamos que dançar nas palmas das mãos de quem tem objetivos políticos escondidos.

O último motivo é mais prático e visa o futuro. Estas imagens serão usadas com o tempo, seja em propagandas eleitorais ou em algum outro material de divulgação. O mesmo foi feito durante o impeachment de Dilma Rousseff, convém lembrar. Daqui a muitos anos, historiadores pesquisarão o material de referência desta década conturbada e terão trabalho extra para discernir o que é fato do que é narrativa política. Antes disso, herdeiros políticos de ideias nefastas pinçarão declarações a dedo para confundir a população do país do escândalo que não tem tempo para lembrar de indignações passadas porque está ocupado em entender a do dia.

A corrupção da corrupção

O psicólogo Steven Hassan, cuja obra não foi traduzida para o português, é especialista em táticas de manipulação e criou algo chamado de modelo BITE para explicar as diferentes formas usadas para alterar a percepção da realidade. Ele postula que existem quatro grandes áreas de influência: Behaviour (comportamento), Information (informação), Thought (pensamento) e Emotional (emocional).

Cada um desses ramos envolve estratégias específicas de manipulação e expor todas elas aqui levaria muito tempo. Aos interessados, uma visita ao site do autor pode esclarecer muitas dúvidas. Hassan propõe que estas técnicas são usadas para criar o que ele chama de influência indevida, uma forma específica de manipulação voltada a distorcer a visão de mundo das pessoas.

Uma destas estratégias se chama linguagem carregada e é exatamente o que foi exposto no início deste texto. Uma vez que seu alvo entenda palavras com outro significado, quaisquer mensagens enviadas a ele serão terão automaticamente uma nova interpretação. É uma versão localizada do que George Orwell chamou de novilíngua em 1984.

A alteração do sentido das palavras só funciona se ele for reforçado no meio por pessoas que demonstram acreditar que aquela é a definição correta. O jogo semântico também requer a criação de novas categorias linguísticas para explicar atos que seriam condenáveis de outra forma. É por isso que circulam por aí coisas como “racismo do bem”, “bullying do bem”, “homofobia do bem”. Ninguém, em sã consciência, admite fazer o mal.

Quando a operação Furna da Onça foi declarada, todos os olhares se voltaram ao senador Flávio Bolsonaro, que, uma vez filho do presidente, é automaticamente catapultado à categoria de pessoa de interesse. Em resposta a isso, as tropas de contrainformação prontamente contra-atacaram, dizendo que a imprensa estaria protegendo outros políticos envolvidos — especialmente os de esquerda — e que eram acusados de desviar valores ainda maiores.

A noção de “números maiores significam mais gravidade” é uma derivação (errada) do mundo das redes sociais, onde a força do argumento é sobrepujada pelo número de seguidores. E é aí que entra o pulo do gato: a denúncia de que esta hierarquia foi desrespeitada pela imprensa séria não é acompanhada da tão necessária informação de que ela nunca foi seguida em primeiro lugar.

Esse mesmo princípio foi aplicado com o assessor Fabrício Queiroz. Ele nunca negou o peculato — pelo contrário, confessou — mas sempre reforçou que só o fez para poder contratar pessoas para um certo “gabinete informal”. E, de repente, cria-se a ideia (falsa, é bom lembrar) de que as forças de segurança é que são as vilãs da história, por estarem dizimando empregos. É a mesma narrativa que fez com que muitas pessoas dissessem que a Lava Jato foi responsável por milhões de desempregados, e não a corrupção praticada pelas empresas investigadas.

E é também o mesmo processo que permite a manutenção de dissonâncias cognitivas responsáveis por fazer com que a pessoa mantenha paralelamente ideias contraditórias (o duplipensar exposto por Orwell). Ninguém é anti-vacina, e sim contra os chips que estão sendo inseridos sem autorização no corpo pelos imunizantes chineses. Ninguém é a favor da covid-19, apenas contra o autoritarismo dos governos de estado.

Corrupção e ressentimento

Há algo ruim dentro de cada um de nós. Uma parte nossa que fica feliz quando algum desafeto sofre um revés na vida, que comemora quando alguém passa vergonha, que se delicia com a desgraça alheia. E nós passamos a vida inteira decidindo o que fazer com esse sentimento, se devemos nos orgulhar dele ou enterrá-lo, se devemos nos culpar por ser assim ou apenas aceitar que é parte inerente da condição humana.

Nelson Rodrigues, um dos maiores especialistas do íntimo brasileiro, explicou em um artigo que escrevia sua obra teatral para amansar a besta que vive na plateia: “A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karênina ou Bovary trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No Crime e Castigo, Raskólnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos.”

Em um mundo onde cada vez mais tudo se confunde com política, é de esperar que os estereótipos da literatura sejam transferidos os atores deste campo distinto. Mas aqui não temos mais uma serpente, um Heitor, um Coringa a nossa espera e cada pessoa é livre para dar ao seu elenco escolhido o papel que quiser. Esse é um dos fatores que explicam o ódio que certas pessoas sentem pelo ex-presidente Lula. Lembrando Nelson Rodrigues, essa aversão é uma forma de dizer “olhem pra mim, eu sou diferente”. Só que a mesma lógica pode ser aplicada ao presidente Bolsonaro. Por estarem neste papel, estes atores absorvem nossos sentimentos ruins para que nós não precisemos descarregá-los em pessoas próximas.

Toda vez que tomamos uma decisão, corremos o risco de atrair a ira daqueles que discordam e nós e isso é especialmente verdade na política. Em uma crise como a pandemia do novo coronavírus, cada governante precisa lidar com uma série de escolhas difíceis e equilibrar todos os pratos na balança é impossível. Alguém terá que fazer concessões e esse alguém certamente não vai concordar com os resultados.

Há uma insatisfação imensa — e inevitável, lembrem-se! — em todo o país neste momento e nosso governo central responde a ela com o clichê de que “foi o STF que decidiu assim”. Nosso executivo, em vez de agir para tranquilizar a população, insufla seus ânimos e direciona a raiva resultante para seus adversários.

Percebam: em todos os momentos importantes da crise sanitária, o maior esforço do Planalto foi esquivar-se e apontar com dedos acusadores aqueles para quem julgava que esses sentimentos negativos deveriam atingir. Fechar a economia, apesar de necessário, era uma ação que deixaria muita gente indignada, mas não tem problema, a culpa é dos governadores. Os caminhoneiros se revoltaram com o aumento do preço do diesel devido à política da Petrobras, a culpa é dos governadores.

A tática já deu frutos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, ao mascarar os repasses obrigatórios da União aos estados como recursos extras para o combate à pandemia, Bolsonaro fez com que muitas pessoas passassem a criticar o governador Eduardo Leite, que, inclusive, recebeu um pedido de impeachment por crime de responsabilidade, acusado de mau gerenciamento de dinheiro público. Esses movimentos, aliás, surgem após o nome do político ser cogitado para a disputa do executivo nacional em 2022.

Muitas pessoas comuns acabam acreditando nessa artilharia retórica porque não têm as ferramentas necessárias para interpretar o contexto. Mais que isso, elas são impotentes para fazer qualquer movimento de apoio ou repúdio. Esse sentimento reprimido evolui e se torna ressentimento, uma bomba relógio. Um dos cartazes que me chamou a atenção em minha provincial caminhada estava afixado a uma livraria e dizia “Estamos fechados. Não ‘somos essencial’”. O uso da linguagem escrita, com suas aspas e erros ortográficos propositais, é um sinal de que há algo mais permeando as aparentes águas calmas pelas quais navegam a nau de bandeira preta do estado.

Muito se disse que, após o impeachment de Dilma Rousseff, teríamos um país rachado em dois e seria necessário um líder que unisse estas partes novamente, mas não foi isso o que aconteceu. O movimento pendular, se deixado a revelia, atinge extremos cada vez mais distantes e é necessário uma intervenção para interromper este ciclo.

Só que o discurso do “nós contra eles”, embora tenha causado danos por mais de uma década, é muito mais fácil de explorar para ganhos eleitorais. Toda vez que um político de um lado do espectro político ataca um adversário, ambos saem ganhando, uma vez que a mensagem é interpretada por suas bases eleitorais de forma distinta. Para os apoiadores do político atacado, estar na mira de um adversário infere que ele fez algo certo e que atraiu essa carga de ódio. Seu algoz, por outro lado, será elogiado por ter a coragem de demonstrar quem é um dos responsáveis pelo status quo decadente que temos hoje.

Em um mundo fragmentado, não há emoção forte o suficiente para unir as pessoas, convertidas em militantes políticos, em torno de uma causa. Todo mundo é inimigo de alguém, mesmo que não saiba.

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Júlia V. Kurtz é jornalista e repórter do Portal UOL.