Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Este país não é o Brasil

(Foto: Reprodução YouTube – Jair Bolsonaro)

A melhor série de streaming é o governo do Brasil. O produto mais barato do país é a vida humana. Que série superaria um presidente protagonista de uma reunião de quase duas horas atirando 34 palavrões e os ministros da Economia, Casa Civil, Educação junto com o presidente do Banco Central somando mais meia dúzia? Todos deixando de lado o assunto mais importante, o vírus? Isso não existe na vida real.

Que país a caminho de 23 mil mortes e mais de 300 mil casos confirmados da doença ouviria da ministra dos Direitos Humanos que iria pedir prisão para os governadores e prefeitos que recomendassem o isolamento à sua população? “A maior violação de Direitos Humanos dos últimos 30 anos”, diz Damares.

Neste panorama em que já somos os segundos em mortandade no mundo, agora proibidos de entrar nos Estados Unidos, qual ministro da Educação diria, sobre o isolamento, que “botaria todos esses vagabundos na cadeia, a começar pelo STF?”,“ a porcaria que é Brasília”, pérola de Abraham Weintraub.

Quando um ministro do Meio Ambiente diria que, por causa da pandemia, “estamos num momento de tranquilidade no aspecto de cobertura da imprensa”? E Ricardo Salles sugerir que é para “ir passando a boiada” e “canetando” todas as regras absurdas que de outras forma não passariam? O Parlamento Europeu já ameaça o Brasil de retaliação por causa da PL da Grilagem e o aumento do desmatamento da Amazônia.

E onde, diante de tantas mortes, o presidente diria “quero todo mundo armado” contra o isolamento que salva vidas? Três dias antes o adolescente João Pedro Matos Pinto foi atingido em São Gonçalo por um tiro de fuzil enquanto brincava com os primos dentro da casa que tem 72 marcas de disparo.

Esse país não é o Brasil. Quando meus amigos estrangeiros me perguntam onde estou morando respondo: “fora”. Estou morando fora do Brasil.

Em pelo menos seis momentos Bolsonaro “diz” que quer a troca da Polícia Federal para obter informação privilegiada e proteger os filhos e amigos. “Vou interferir”. Enquanto o ministro da Economia, que já baixou de R$600,00 para R$200,00 o benefício aos desempregados, diz por que o governo vai fazer “o discurso da desigualdade”: “Vamos gastar mais, vamos eleger o presidente”. Moro, calado, saiu antes da reunião terminar.

Os militares também ficaram calados, como ficaram diante da ameaça de golpe que faz parte do arsenal de palavras e armas de Bolsonaro. Mais de uma vez o presidente se referiu à ponta da Praia – um local para execuções –, e ao pau-de-arara, familiar a todo mundo que viveu aqui os anos 70. Até agora se discute o uso da palavra tubaína na alegre piada feita por Bolsonaro dois dias antes da reunião de abril quando 1200 brasileiros morriam por Corona. “A direita toma cloroquina, a esquerda toma tubaína”. É um termo de tortura?  Adriano Diogo, ex-deputado torturado durante a ditadura, que presidiu a Comissão da Verdade em São Paulo, afirma que sim. É a tortura da água usada na Idade Média. Coloca-se um funil na garganta do suspeito, entorna-se uma enorme quantidade de líquido, até óleo de rícino, este o “afogamento de tubaína”.

Para alguns houve um strip-tease moral. Para outros o strip-tease foi físico: o rei está nu. “Pego 15 armas e vou para matar ou morrer se minha filha for presa”, diz Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica Federal, referindo-se aos vigilantes que retiraram pessoas da praia durante a pandemia. Ouve-se que o Tribunal de Contas da União é “usina do terror”.
Entre pronunciamentos de hemorróidas e “quetais”, só uma brevíssima intervenção mal ouvida do breve ministro da Saúde Nelson Teich sobre o vírus e o medo da população. E a imprensa na berlinda, “não pode falar nada, tem que ignorar esses caras, pautado por esses pulhas, se puder falar zero com a imprensa”, Bolsonaro ameaça ministros.

Cultura, enclausurada no ministério do Turismo desocupado pela quarta vez. A última, por Regina Duarte, eufórica para “fazer Cinemateca”, designada porque o presidente afirmou que fica “ao lado da casa dela”. Seria competência do Turismo a abertura dos Cassinos apoiada na reunião por Paulo Guedes e rechaçada por Damares como “pacto com o diabo”?

Barbaridade é pouco. Em relevo, os militares, cujo campo de ação é a guerra. Em nenhum país decente teriam tanta projeção no governo, lotando a pasta da Saúde onde perdemos a conta dos militares que a ocupam, nove mais nove, mais o general Pazuello.

Em que país o ministro Augusto Heleno do Gabinete de Segurança Nacional se arvoraria a ameaçar (com o quê, mesmo?) caso a Justiça apreenda o celular de Bolsonaro? “Traria consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Bolsonaro diz que só entregará o aparelho se for um “rato”. E foi bajular a Procuradoria Geral que vai tomar a decisão.

Isso só acontece no país onde o IBAMA e o Instituto Chico Mendes estão subordinados aos militares, que controlam a Ancine. Onde a Cinemateca Brasileira que guarda o tesouro da produção brasileira – 250 mil rolos de filmes e 1 milhão de documentos – passa a ser ocupada por militares e políticos vacinados contra o “marxismo cultural”. De tanto militar no governo, a linguagem da caserna virou o novo idioma no Planalto. Laranjeira para quem mora no quartel. Estar de baixa: doente. Embuste: gabar-se. Rolha: inútil. Zaralho: bagunça. Zero: estar entre os primeiros da turma. Zero Um: primeiro da turma. Além da repetição dos bordões do presidente, “chance zero”, “ponto final”, “Cala a boca”, “E daí?”, “Lixo”, “Chega de mimimi”, “Aceitem que dói menos”. “Côco petrificado de índio” (problema com o patrimônio histórico). Todo mundo bate continência. Nesse ambiente o general Brilhante Ustra é idolatrado, e seu livro “A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça”, recomendado a professores.

O vídeo do dia 22/5 remete à Conferência de Wannsee em 1942 quando Hitler e os líderes da Alemanha nazista implementaram a solução final para a questão judaica, o que significava judeus encaminhados em massa para campos de extermínio. Com a milícia armada até os dentes,  judeus somos todos nós.

Numa entrevista realizada com correspondentes estrangeiros, um dia antes da liberação do vídeo, Dilma Rousseff respondeu ao Observatório da Imprensa que Bolsonaro tem vários motivos para sofrer Impeachment  pelo desrespeito à Saúde Pública, os ataques à democracia.

“Nós não permitiríamos as reformas que este governo fez, previdenciária, trabalhista, as privatizações nem a exploração mineral no meio ambiente. Este governo expulsou 11 mil médicos e ainda não resolveu se é melhor cuidar da economia ou liberar fundos para permitir que as pessoas fiquem em casa. Os tais R$ 600,00, eles só pensaram por três meses quando o Covid durará dois anos, e criaram medidas genocidas de filas nos Bancos por 104 milhões de brasileiros que ganham R$ 413 reais mensais menos do que ganha a camada mais pobre de qualquer país. É caso de impeachment”.

Por que Rodrigo Maia não coloca em votação no Congresso as dezenas de pedidos que recebeu? Dilma responde:

“Este governo aposta no colapso social, no ódio, no autogolpe. Até a Globo virou comunista. Não se executa o impeachment porque é uma possibilidade remota. Depois da aliança com o Centrão, a medida não teria votos suficientes no Congresso”.

No vídeo em que fez piada com a cloroquina, a substância já estava autorizada pelo ministério da Saúde, mesmo depois de um teste conduzido pela Escola de Medicina de Harvard com 96 mil pessoas provar que há riscos de morte no consumo. Ali Bolsonaro, rindo, ressaltava: “O que é democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina, agora, quem quiser tomar, que tome”. Mas que capacidade de decisão terá o paciente que chegar semi-morto ao hospital, sem acompanhante, para morrer só?

Um livro recente de Naomi Jaffe relata o caso de Nadejda que durante 25 anos sussurrava para não esquecer versos do marido Óssip Mandelstam, um dos poetas mais importantes da Rússia do século XX. Óssip já era famoso quando escreveu um poema satirizando Josef Stalin e ambos foram exilados. Ela tinha 39 anos, ele, 47, quando foi deportado para a Sibéria, onde morreu.

O livro de Naomi O que ela sussurra (Cia das Letras) conta a trajetória de Nadejda ao lado do marido desde 1922 . Quando Óssip morreu todos os seus poemas foram destruídos e as pessoas, perseguidas se tivessem algum deles em casa. Nadejda passou 25 anos sussurrando, memorizando os poemas que só puderam ser publicados em 1962, nove anos depois da morte de Stálin.

Como Nadejda, não vai demorar para que tenhamos que sussurrar livros, ideias, memórias, desejos. E palavras como democracia, decência, civilidade, cultura, solidariedade, compaixão, paz, amor, Brasil. Essas coisas em extinção que teimamos em não querer esquecer.

Como era boa a nossa diplomacia

Roda-Viva com Celso Lafer

Dá gosto assistir à hora e meia da entrevista para lembrar como é a diplomacia brasileira da qual nos orgulhamos. Jurista e ex-ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer afirmou nesta segunda feira no Roda-Viva (25/05/20) que não identifica nenhuma “ascendência moral” na atual equipe do Itamaraty, que nossa diplomacia cai “de paraquedas” e não estará sentada à mesa que decidirá os destinos do mundo depois da pandemia. Lafer se diz chocado com a reunião presidencial do dia 22/4:

“Nunca vi nada parecido como forma de conduzir uma reunião. É um espaço público sem preocupação com a coisa pública. Não consigo identificar um rumo para a sociedade brasileira. Os elementos que serviram para eleger Bolsonaro não servem para governar o país”

Lafer insiste que devemos construir pontes e não muros, como acontece no momento. Lastima a falta de decoro do governo, como atesta o vídeo da reunião, e defende a imprensa “ser livre é ser informado”.

Imperdível. Assista a entrevista, ao vivo, aqui.

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Norma Couri é jornalista.