Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo, golpe militar e a imprensa alternativa

O jornalismo esteve, dede o início da Modernidade, associado à ideia de democracia. A ideia não é nova, já que antes mesmo da chamada era cristã informações publicizadas faziam parte do compromisso que os governantes da Grécia e Roma antigas tinham com o público. Embora muito diferente da democracia contemporânea – e ainda que se questione sua efetividade e a quem representa hoje –, a ideia de que deve haver um espaço público de controvérsia parece ser o caminho consolidado a partir do conceito de cidadania, tão caro a quem lutou por ele, seja na Revolução Francesa ou diante de governos autoritários, baseados na intimidação e perseguição militares – e todo seu aparato técnico, secreto e total.

Das muitas lembranças do golpe militar de 1964 – a partir do qual muitos cidadãos brasileiros e alguns estrangeiros foram perseguidos física e emocionalmente, torturados, assassinados – a que nunca se pode deixar passar é a de ser memória e testemunho e do compromisso de lutar para que o pior do passado não retorne como possível solução.

Ainda que minoritários, os que bradam pela volta de uma intervenção militar no Brasil esquecem o grau de corrupção e a falta de liberdade a que esteve ligado o regime militar no Brasil entre 1964 e 1985. Ou, então, querem aquele ambiente de novo para que se beneficiem particularmente dele.

Um regime em que não se permitia a investigação jornalística, em que os organismos do estado só investigavam opositores ideológicos – e muitas vezes os prendiam e assassinavam sumariamente – poderia achar mesmo que as coisas iam bem, tipificadas na constatação de um dos ex-generais que ocupava a presidência da República, Emílio Médici. Tal constatação de um dos principais responsáveis por mortes de civis era a de que ao assistir televisão, via que o planeta inteiro tinha problemas, e o Brasil não. Certamente se houvesse liberdade de imprensa e não houvesse temor civil, os enormes problemas brasileiros apareceriam. Claro está que num certo momento, o do “milagre econômico”, houve um artificialismo na economia que o deixou relativamente “bem” – a custo de intimidações e controle e sob patrocínio de conglomerados internacionais, organismos de inteligência e países hegemônicos – logo desmanchado por sucessivas crises econômicas que geraram um caos social a ponto de os civis terem de retomar o comando do país, em abertura que esperava desengessar a economia e modernizar o capitalismo, coisa que ainda está por se fazer…

Mas onde está o dinheiro gasto na Transamazônica? E o estado em que foi deixada? E o que escorreu de dinheiro por ela, nunca mais recuperado, está em mãos de quem? E a hidrelétrica de Itaipu, o quanto custou aos cofres públicos, e o quanto foi desviado, em algumas situações por comissões generosas que não se sabe a extensão até hoje? E o processo de sucateamento das ferrovias – que liquidou a modernização via trens que traria enormes benefícios ao transporte, ao país e evitaria milhares de mortes como hoje se verifica – substituído pela pavimentação asfáltica que tanto benefício trouxe às empreiteiras, a ministros, a empresários apoiadores do golpe e ao capital internacional de empresas como Firestone, Good Year e o lobby do petróleo? É só comparar a escolha de países europeus para o transporte público e o caminho brasileiro – acelerado pelos militares, embora já estivesse no cerne de governos como o de Juscelino Kubitschek. Popular foi a expressão “ministro 10 por cento”, ministro “20 por cento”. Alguém investiga as riquezas geradas à época da ditadura? E não seria o desvio à época superior aos gastos na Copa? A estes há que investigar, mas o saudosismo de uma época em que houve mais desvios e menos investigação está apenas no horizonte dos interesses particulares.

À época, a tortura, o desaparecimento e os assassinatos imperavam , as invasões de casas se espalhavam por todo o país. Sem explicação qualquer e sem cobertura midiática. Nunca se investigou tanto a corrupção como hoje e nunca houve tanta liberdade midiática para tal em toda a história da República, ausentes naquele período da história brasileira. Nunca se debateu tanto a liberdade de imprensa como hoje e os caminhos do jornalismo. E houve gente que lutou por isso. Não foram os militares golpistas, não foram os empresários, não foram os que hoje propõem – ainda que forma fracassada ou pífia – as marchas de deus com a família pela liberdade.

Jornais de resistência em Florianópolis

Entre os muitos que lutaram, estão jornalistas em todo o país. Em Santa Catarina também. E em Florianópolis. E, na semana em que se realiza o 5º Encontro Regional Sul Rede Alcar (Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia) [o evento ocorre nos dias 27 e 28 de março na Universidade Federal de Santa Catarina (www.alcarsul2014.sites.ufsc.br)], com o tema 50 anos do Golpe Militar de 64 – a história que a mídia faz, conta ou não conta], com a presença de João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart – o Jango – , deposto pelos militares, deve-se lembrar de alguns destes jornalistas e jornais, alguns com vida mais longa, outras menos e que, em diferentes épocas do regime, correram risco para que hoje houvesse mais liberdade civil e de investigação jornalística. Houve jornais que contaram, e, em alguns casos, que tentaram contar.

Em Florianópolis, jornais como Bernunça, criado por Eloy Galloti Peixoto; Vento Sul, que durou seis meses, com participação de Sérgio Lino, e fundado pelo ex-coronel da Polícia Militar, Nery Vieira, cassado pelo regime militar; Desterro, com Cesar Valente, Pedro Port, Carlos Damião, Raimundo Caruso; Lutas da Maioria, por Renan Antunes de Oliveira; Contestado, com Celso Martins, Cau Cancellier, Valdir Alves; Afinal, com Sérgio Rubim, Ney Vidal, Elloy Galloti, Flávio Carvalho, Jurandir Camargo, Nelson Rolim de Moura; Novo Jornal, com Jurandir Camargo, Sérgio Rubim; e Matraca, de Sérgio Lino, foram alguns dos que compuseram o cenário. Alguns trabalharam em dois ou mais jornais e muitos outros trabalharam ou foram colaboradores em vários deles [o jornalista Rodrigo Andrigheto fez interessante reportagem em seu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo, “Panorama sobre a Imprensa Alternativa de Florianópolis nos anos de chumbo”, apresentado em 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina].

Tantos outros jornalistas, políticos, professores, intelectuais e diferentes militantes de distintas áreas – e aqui não caberia citar a todos – contribuíram para a resistência e a consolidação do campo da liberdade. Com diferentes perspectivas editoriais – mais informativos ou mais opinativos, engajados em diferentes ideologias – contribuíram, a seu modo, para expor as entranhas do regime militar, de seu autoritarismo, das autoridades que se locupletaram em seus cargos sob a impunidade. Os alternativos compuseram um cenário cujo legado agora a liberdade de imprensa e os organismos do estado tem maior espaço de investigação. Sem a resistência, não haveria ambiente propício aos debates de hoje, ainda que com matizes diferentes.

A possibilidade de dizer , que não havia, existe como nunca. E é uma das razões pelas quais não se deveria defender a volta de um tempo em que não havia a possibilidade legal de dizer. Parece algo que não pode sair da memória. Por isso, mais do que uma ética específica de categoria, é necessário também a defesa de uma ética vinculada a um agir coletivo balizado por conceitos como solidariedade, universalidade e cidadania, muitas vezes esquecidos diante da transitoriedade do tempo.

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Francisco José Castilhos Karam é pesquisador do objETHOS e professor na Universidade Federal de Santa Catarina