Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A combinação perigosa de jornalismo e propaganda

Quando surgiu na TV Bandeirantes, em março de 2008, o CQC, Custe o Que Custar entusiasmou logo de cara. Afinal, era novidade para toda uma geração: programa que combinava jornalismo e humor na TV brasileira, irreverente e ousado. Era a realização de nosso sonho antigo: arremessar aquelas perguntas bem impertinentes, e absolutamente necessárias, a alguns dos donos do poder em nosso país, ainda muito injusto. Jornalismo combativo e crítico, como pouquíssimas vezes se viu em nossa TV.

O CQC, na verdade, para quem viveu os anos de 1980, significava um retorno. Recuperava linha jornalística mais bem-humorada, simbolizada essencialmente pela volta ao jornalismo da TV aberta do jornalista multimídia Marcelo Tas, âncora do programa. Tas encarnou, a partir de 1983, na TV Gazeta de São Paulo, no programa 23ª Hora, a personagem Ernesto Varela, o repórter. Um sujeito franzino, manso, com roupas extravagantes, óculos e gravata vermelhos, um verdadeiro nerd, mas capaz de atos da mais quixotesca bravura.

Seu companheiro de reportagem, a personagem Valdecir, Sancho Pança com uma câmera na mão, era aquele que se tornaria um dos melhores diretores de cinema do Brasil em todos os tempos: o Fernando Meirelles de Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira.

Com muitas perguntas na cabeça e uma câmera na mão, Tas e Meirelles cavalgaram os centros de poder em Brasília e também o interior confrontando políticos e fatos de todas as estirpes, apenas com perguntas que nos proibiram de fazer por muitos anos no Brasil, primeiro, por medo, depois, com o passar dos anos, já por hábito, incorporado como natural e genuíno.

Um colorido de cavaleiros andantes

Assista a dois dos bons momentos do repórter Ernesto Varela:

 

Os tempos eram bem outros, aqueles, e mais difíceis: estávamos ainda sob ditadura militar, que suspendeu, por 21 anos, de 1964 a 1985, direitos básicos da gente, como o de escolher nossos dirigentes no voto direto e o de opinar livremente, sem ser perseguido, torturado ou morto por isso.

As investidas de Tas e Meirelles tinham mesmo esse colorido de cavaleiros andantes, algo mítico e heroico, e eu, menino, comemorava cada entrevista, cada pergunta feita, como aquela ao Maluf, ‘Dizem que o senhor é corrupto, é verdade isso, deputado?’, como gol do doutor Sócrates.

Uma mistura muito perigosa

O CQC, portanto, era a versão contemporânea do jornalismo irreverente, crítico e bem-humorado, que conhecia e admirava, de volta à TV, essa nossa TV quase sempre tão conservadora e oficial no mau sentido. Promovia o ponta de lança Tas, já perto dos 50 anos, a técnico, como ele mesmo dizia, ‘para dar uma base para que os meninos possam atuar com tranquilidade’ [leia conversa do Jornalirismo com o Tas aqui].

Pois preciso confessar agora que, passados mais de dois anos, algumas decisões comerciais e editoriais do programa têm me incomodado. A combinação perigosa de jornalismo e propaganda é uma delas.

No CQC, os anunciantes conseguiram realizar um sonho: o de envolver os apresentadores de um programa jornalístico em comerciais de seus produtos ou serviços. Em canais e programas de caráter mais jornalístico na TV, nos que se colocam como sérios, ao menos, isso sempre foi evitado, pelo motivo mais antigo da profissão: a necessidade de independência jornalística.

Marcelo Tas, Rafinha Bastos, Marco Luque, seus apresentadores, e equipe de reportagem são garotos-propaganda dos anunciantes mais variados, como Pepsi, Skol, Sadia e Gillette. Tudo bem, o mundo mudou, talvez o público mais jovem não dê nem bola para essa mistura que a velha-guarda sempre ensinou como muito perigosa para a livre circulação da notícia, para a boa informação do cidadão.

Polêmicas de baixa relevância

Sou passadista, então, e acho muito complicado esse trânsito de valores, inclusive (ou principalmente), financeiros entre jornalistas e marcas. Se um dia a empresa que patrocina o programa e seus jornalistas der uma grande mancada, realmente prejudicando a população, como atuará o CQC? Agirá com a mesma fúria? Como ficará a investigação de uma empresa que eu mesmo, em pessoa, endossei como de qualidade? Será, levando a questão a fundo, falar mal de mim mesmo, afetando, inclusive, meu rendimento financeiro e minha imagem. Seremos capazes disso?

A inserção dos tais anúncios no meio do programa, sem nenhum aviso para o telespectador, como faz o CQC, driblando o intervalo comercial, me parece também problemática. A gente está assistindo ao conteúdo editorial e, sem indicativo, nos impõem uma mensagem publicitária.

O corte muito claro para o intervalo comercial é democrático, já que nos informa o que virá a seguir com transparência e deixa em nossas mãos a decisão de assisti-lo ou não. Não é cachola abaixo, sem remissão.

Gosto do jornalismo questionador, que lança os temas para o debate da sociedade, sem rei para reverenciar. Aliás, acho essa a função mais nobre do jornalismo: a de colocar corajosamente as questões fundamentais para o debate livre e aprofundado. O CQC, a meu ver, tem se especializado em polêmicas de baixa relevância e investido muito pouco em profundidade. Não basta formular teste de conhecimento e sair correndo pelo Congresso Nacional, a fim de mostrar a reconhecida precariedade da maioria de nossos políticos.

O risco de não ser mais levado a sério

A realidade é muito mais complexa e nossos problemas desembocam no Congresso e no Planalto, mas não nasceram necessariamente todos lá. Cobrir política não é cobrir Congresso, exclusivamente. Como sabemos, muitas decisões que nos dizem respeito diretamente são tomadas bem longe de lá, sem que nem nos consultem. O jornalismo precisa ir a esses lugares.

Gostaria de ver a discussão dos grandes temas nacionais, emprego, educação, saúde, cidadania, de modo aprofundado no CQC, com entrevistas de fôlego, que colocassem de fato as perguntas que precisam ser respondidas para todos avançarmos. Contextualizando as coisas. Conscientizando.

A cobertura do CQC da Copa do Mundo da África do Sul foi qualificada, pelos próprios integrantes do programa, de ‘histórica’. Assisti às matérias feitas de lá e não vejo motivo para celebrar. Ficar na porta de entrada dos estádios ou nas arquibancadas fazendo piadas irrelevantes e erotizadas ou ridicularizar os adversários do Brasil é um desperdício de oportunidade.

A África do Sul nem de longe apareceu no CQC; deveriam, a serviço do bom jornalismo, ter se enfiado em Soweto, no meio da população sul-africana e até mesmo estrangeira, e de lá trazido outro viés, outro humor, o significado de uma Copa no continente, as histórias que precisavam ser contadas e não foram. Está faltando senso (auto)crítico ao CQC.

Não sou dono de nenhuma verdade, erro muito mais que gostaria, sou limitado demais, mas acredito que o CQC corre o sério risco de não ser mais levado a sério. E, aí, vai precisar se assumir como programa de humor. E só. E olhe lá.