Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Equívocos sobre o jeitinho brasileiro

Uma reportagem trazida pela revista Época na edição 1.031 de 02.04.18 trouxe à tona uma discussão bastante comum em momentos onde se questiona a ética da sociedade brasileira, particularmente diante dos inúmeros exemplos de desvios éticos na esfera pública e que permeiam nossa história. Utilizando como cenário o “jeitinho brasileiro”, ou seja, a prática atribuída aos brasileiros de burlar uma norma ou lei vigente em proveito próprio, longe de expressar uma imparcialidade jornalística, a reportagem se limita a apresentar maus exemplos, criticando-os enquanto assume um papel moralizador. Ao assim proceder, incorre em apresentar uma visão distorcida desta prática, cabendo aqui, portanto, alguns esclarecimentos.

A prática do “jeitinho” não é uma exclusividade do Brasil. A forma tipicamente representativa da sociedade brasileira seria consequência direta de nossa independência política de Portugal ter sido “apenas um processo formal de ruptura com o estatuto colonial (…) isso fez com que ela tivesse que tomar emprestado a outras nações os seus valores, modos de vida, hábitos de consumo, padrões de trabalho” (RAMOS, 1983, p.287).

Desta forma, outorgou-se um sistema de normas e leis que muitas vezes não correspondiam à realidade social brasileira — exatamente o que ocorreu em outras colônias de caráter exploratório da América Latina, como as espanholas — o que suscitou um comportamento individual potencialmente transgressivo.

Segundo Ramos (1983, p.421), o “jeito” é uma consequência direta do formalismo, “a discrepância entre a conduta concreta e a norma prescrita que se supõe regulá-la (…) típico de sociedades prismáticas, as quais apresentam alto grau de heterogeneidade, uma vez que nelas coexistem (…) o atrasado e o avançado”. Para Ramos (1983), é um comportamento típico de sociedades elitistas que se estruturam dependentemente dos países centrais do capitalismo, nas quais uma forma genuína de ser cede lugar a uma cultura de mentalidade colonizada. Para DaMatta (2004, p.48), o “jeito” seria “um modo pacífico e socialmente legítimo” que, “provocando uma junção casuística da lei com a pessoa” e se utilizando do caminho da “harmonia, da paciência e da conciliação”, propiciaria uma resolução satisfatória de conflitos.

Para Dulce (2011), discorrendo sobre a ocorrência do “jeito” na Colômbia, sua presença se faz em assuntos jurídicos e também em outros de natureza política, social e econômica, de forma individual e coletiva, afirmando ainda que o descumprimento da lei é comum em outros países da América Latina, não sendo assim um problema estritamente normativo jurídico, mas também social e cultural, cujas razões para o cumprimento ou descumprimento das leis e normas podem ser variadas e sem possuir necessariamente um fundamento.

Por outro lado, DaMatta (2004, p. 46), citando a França, Estados Unidos e Inglaterra, diz que em tais países o conflito que poderia ser decorrente da necessidade de se cumprir a lei e o desejo (ou necessidade, sob um determinado ponto de vista) de burlá-las por parte dos cidadãos seria inexistente: neles, as leis simplesmente são concebidas de acordo “com o bom senso e as práticas sociais estabelecidas”, o que se configura não necessariamente um sinal de civilidade ou adiantamento, mas, sim, “adequação entre a prática social e o mundo jurídico.”

Portanto, o “jeito” surge quando o indivíduo se sente pressionado a cumprir uma norma ou lei que percebe como prejudicial a um interesse seu imediato por ser contrária a sua cultura, crença ou costume, induzindo-o a transgredi-la em proveito próprio. Ressalta-se que, para Barbosa (2005, p.41), há alguns critérios para se afirmar que uma determinada atitude é de fato um “jeito”: a motivação para tal deve ser oriunda de um acontecimento imprevisto e contrário aos objetivos individuais, que exige uma resposta especial, eficiente e rápida capaz de proporcionar resultados desejáveis em curtíssimo prazo. Assim, a reportagem comete um deslize teórico, perdendo-se ao exemplificar o “jeito” através das seguintes situações (SOUTO; VARELLA, 2018):

1) A aprendiz de motorista de carro que pagou indevidamente para conseguir sua habilitação, pois não queria perder tempo caso fosse reprovada no exame;

2) O corretor de imóveis que adultera os contracheques de seus clientes para facilitar a aprovação do crédito junto a instituições financeiras, “beneficiando” a si mesmo e seus clientes;

3) O aficionado por jogos de futebol que adquire um aparelho desbloqueado de sinais de TV a cabo, sem pagar pela respectiva assinatura;

4) O estudante que falsificou a assinatura da carteira da faculdade para continuar pagando meia entrada em eventos culturais.

Nos casos acima, como aliás a própria reportagem conota ao criticar tais atitudes como simples ato de burlar a lei, não há a presença de nenhum componente que demonstre a estrutura jurídica vigente oprimindo o cidadão ao ignorar sua cultura, crença ou costume estabelecido, ou mesmo de acontecimentos imprevistos contrários a interesses individuais. Não são, portanto, exemplos que exprimem verdadeiramente o “jeitinho brasileiro”.

O mesmo raciocínio se aplica ao exemplo da pesquisadora que, para vender um veículo comprado pelo irmão utilizando o nome de sua mãe (falecida após dois anos de luta contra uma doença, fato que trouxe muitas dívidas aos irmãos), falsifica a assinatura do respectivo documento de propriedadede para evitar o inventário que a impediria por um longo tempo de vendê-lo. Neste contexto, o progressivo endividamento provavelmente não pode ser caracterizado como um acontecimento imprevisto (ao contrário da moléstia em si). Por outro lado, a reportagem não fornece informações suficientes para se afirmar que a atitude da pesquisadora decorreu de um motivo “justificado” diante de um aparato burocrático ineficiente. Faz-se aqui necessário desvincular burocracia de ineficiência, uma vez que aquela não é nem uma coisa nem outra por si só, sendo antes um modelo de gestão social que, por definição, oferece um tratamento racional (e não emocional) a quem dele necessite.

Se a burocracia, por um lado, foi um elemento organizador do Estado brasileiro, por outro propiciou a propagação de uma cultura organizacional que vai de encontro a algumas características da alma brasileira, incompatibilizando-se sua impessoalidade, por exemplo, com nossa cordialidade típica (BARBOSA; LUSTOSA DA COSTA; VIEIRA, 1982). O “jeitinho brasileiro”, neste caso, seria a forma encontrada para conviver com as imposições burocráticas de forma a atenuar seus efeitos, sem que houvesse a necessidade de uma desobediência direta e, provavelmente, conflitante, que iria de encontro também à natureza geralmente pacífica do povo brasileiro.

Para Barbosa (2005, p.33), “o jeitinho nas organizações burocráticas é decorrente da constante necessidade do formalismo, porque é por meio desta característica que a organização desenvolve a possibilidade de dar e negar”, sendo as organizações tradicionalmente burocráticas (as representativas do Estado) aquelas que mais induziriam ao uso de tal prática, o que não excluiria a ocorrência deste em situações relacionadas à vida familiar, emocional, financeira, etc. (BARBOSA, 2005, p.46-47).

Concluiu-se, portanto, que, a partir das definições e características aqui apresentadas, os exemplos de “jeitinho brasileiro” citados pela reportagem não o retratam fielmente, prejudicando a compreensão do leitor ao mesmo tempo em que reforçam alguns estereótipos erroneamente atribuídos como genuínos da sociedade brasileira.

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Mauricio Augusto Cabral Ramos Junior é Administrador de empresas e Mestre em Administração.

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REFERÊNCIAS

BARBOSA, Lázaro Oliveira. LUSTOSA DA COSTA, Frederico. VIEIRA, Clóvis Abreu. O “jeitinho” brasileiro como um recurso de poder. Revista de Administração Pública, n° 2, p.5-31, abr. /jul.1982. Rio de Janeiro: FGV, 1982.

BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

DAMATTA, Roberto. O que é o Brasil? / Roberto da Matta. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. (Coleção Cidadania).

DULCE, María José Fariñas. Normas de papel. La cultura del incumplimiento. Eunomía. Revista en Cultura de la Legalidad. Espanha: Madri, n°1, set.2011-fev.2012, p. 185-188.

RAMOS, Alberto Guerreiro. Administração e contexto brasileiro: esboço de uma teoria geral da administração ⁄ Guerreiro Ramos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio Vargas, 1983.

SOUTO, Luiza. VARELLA, Gabriela. O meu jeitinho. Revista Época, n° 1.031, p.64-69, 02 abr. 2018. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2018.