Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Rússia, tetracampeã; ou Barbárie e humanidade, jornalismo e verdade

Há muita polêmica sobre o jornalismo porque este é uma atividade cuja matriz é a verdade, cuja premissa é a liberdade e cujo imperativo ético é a responsabilidade. Isto se dá porque o jornalismo é uma atividade empresarialmente privada mas prestadora de um serviço público ostensivo. Escrever isto neste OBSERVATÓRIO pode parecer um truísmo: basta lermos os Objetivos desta ONG para nos darmos conta de que a razão de ser do site é abrir espaço para esta boa polêmica.

Discute-se hoje lei de imprensa, discute-se ética, discute-se tudo em (e sobre) jornalismo por uma única razão: ninguém define, delimita, concebe com precisão conceitos como verdade, liberdade e responsabilidade.

Hannah Arendt, essa figura humana maravilhosa cuja obra (e vida) só nos foi acessível porque fugiu para os EUA, ousou enfrentar o tema da verdade. Óbvio que estamos reduzindo, mas o raciocínio de Arendt pode ser expresso na frase: "jamais chegaremos a um acordo sobre o que é verdade, mas ninguém ousa dizer que a Rússia é tetracampeã mundial de futebol". Com certa simplicidade, mas sem abrir mão do rigor, Arendt nos permitiu estabelecer um certo "consenso" sobre o conceito de verdade. O fato a que Arendt se referiu não foi o futebol, mas o início da Segunda Guerra Mundial: a autora lembrava as diversas interpretações do fato mas alertava: nenhuma delas afirmava que a Polônia invadiu a Alemanha. O conceito de verdade de Hannah Arendt já é suficiente para o que pretendemos discutir neste artigo.

Primo Levi, infelizmente menos conhecido no Brasil do que Hannah Arendt, mas já com parte de sua obra traduzida (está nas livrarias A Trégua, edição da Companhia das Letras, atrasada em quase vinte anos no Brasil) é outra figura humana notável. Italiano, químico, judeu, sobrevivente de Auschwitz cuja obra e vida só nos foi acessível pelo absoluto acaso de sua sobrevivência, Primo Levi mostra no seu livro Os Afogados e os Sobreviventes que havia uma lógica absurda na crueldade nazista.

Ela era tão extrema, tão intrincada, tão cheia de atrocidades, tão monstruosa que o público tendia a rejeitá-las em razão do seu próprio absurdo. Na iminência da derrota, Hitler e os seus cuidaram de tentar eliminar as provas. Foram relativamente bem-sucedidos, mas como não deixar vestígios sobre um processo histórico que eliminou um número de pessoas que ninguém sabe ao certo, mas cuja ordem de grandeza é a de milhões? Os judeus contam algo em torno de 6 milhões de vidas humanas perdidas. Os soviéticos falavam em 20 milhões de russos, eslavos, soldados vermelhos, todos seres humanos.

Verdade e pesadelo

Mas o que chamou a atenção de Primo Levi era que a barbárie chegou a uma magnitude tal que, durante sua ocorrência, era mais crível crer que não estivesse ocorrendo. Tal sentimento atingia os oficiais da SS, que ironizavam: "se sobrar alguém para contar, ninguém vai acreditar". Os próprios prisioneiros de campos de concentração preferiam acreditar que vivenciavam um pesadelo terrível do que admitir que aquilo era verdade.

Voltemos aos jornalismo e acrescentemos ainda uma nova questão: como qualificar a credibilidade, atributo maior de qualquer instituição jornalística (ou alguém discute que um jornal é uma instituição?) Evidente: não é algo que se adquire num texto, numa matéria, num artigo. Nem mesmo numa edição diária, que é um conjunto de textos, títulos, fotos etc. É uma construção diária, permanente, de anos e anos.

Os jornais são instituições das mais antigas neste país: todo dia nos apresentam o novo, a novidade, o diferente. No entanto, repetem-se dia a dia em rotinas que, com pouquíssimas exceções, até no Brasil, onde tudo é novo, inclusive a imprensa, reproduzem-se há pelo menos cinqüenta anos. São raríssimos os jornais de menos de cinqüenta anos neste país.

A Segunda Guerra Mundial parece não ter fim e discute-se hoje – via jornais e jornalismo – sobre o ouro roubado pelos nazistas dos judeus.

Ouro maldito, lixo anti-semita

Na trilha deste debate, o jornal A Gazeta, do Espírito Santo, publicou uma série de três artigos intitulada "O ouro maldito", assinada por um profissional que detém o espaço de uma coluna diária, Uchôa de Mendonça.

A Gazeta é um jornal moderno e, relativamente às dimensões do mercado que alcança, de grande porte. Por seus méritos, é líder absoluto no mercado regional capixaba.

Pois bem, este Uchôa de Mendonça não de hoje expressa com certa freqüência um anti-semitismo que desonra o jornal e deveria retirar um belo naco desta credibilidade tão dura de alcançar. Deveria retirar, já que sua ênfase é na reescrita desta história que, mostra Primo Levi, é difícil e doloroso acreditar que ocorreu de fato – e não faz mais de cinqüenta anos, isto é, num momento histórico em que A Gazeta já circulava e estava na sua terceira década.

É admissível um jornal permitir que um redator escreva: "os crime que teriam sido cometidos por Hitler"? Pois neste mês de dezembro de 1997 estas palavras foram escritas impunemente em A Gazeta, no Espírito Santo. A Gazeta ficaria impune caso afirmasse que a Rússia foi tetracampeã de futebol?

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