Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Campanha pelo bem do nosso português

Navegando pelo Facebook, deparei com uma campanha que começou discreta, mas logo ganhou espaço. Vi no mural de várias pessoas. Algumas comentei, outras deixei pra lá. Mas era incrível a adesão que a tal campanha ganhava com o passar do tempo. Todo mundo copiava, todo mundo comentava, todo mundo elogiava. E, claro, todo mundo curtia. É importante, de início, esclarecer: boa parte das pessoas colocava lá como uma brincadeira, quase uma descontração.

Redes sociais também servem para isso, certo? Muita gente leu, achou engraçadinho, copiou e colou. Nada contra quem seguiu esse padrão (não se sinta ofendido caso você esteja dentro da descrição anterior). Quero pegar no pé de quem leva isso a sério, quem acha sinal de inteligência acertar meia dúzia de regências ou pensa que sabe falar “corretamente o português” porque acerta outra meia dúzia de concordâncias. Intitulada “Campanha pelo bem do nosso português”,ela tem os seguintes dizeres:

“Desde – se escreve junto; menas – não existe; seja/esteje – está errado; com certeza – se escreve separado; de repente – se escreve separado; mais – antônimo de menos; mas – sinônimo de porém; a gente – separado; agente – só secreto; mim – não conjuga verbo; uma grama é o matinho do campo de futebol; um grama – medida de massa (g); de novo se escreve separado. E, se não for incomodar (sim, com i) cole no seu mural e melhore o seu convívio linguístico.”

A campanha comente alguns erros evidentes: confunde língua, grafia e gramática normativa. Um erro totalmente compreensível para quem não é da área (como eu), mas imperdoável para quem quer aplicar aulas de grafia nas outras pessoas. Aliás, esse parece ser um defeito recorrente: alguém lê um livro do tipo “Não erre mais” ou “Os 100 erros mais comuns” e a partir daí se acha linguisticamente superior. “Sei falar português”, pensa. “Não é assim que se fala, burro”, gosta de explicar.

Numa universidade você depara com essa espécie, o homo sapiens falar diariamente. Pena que dizem defender uma gramática que não defendem. Na verdade, acham que defendem (leia-se, conhecem), mas parecem desconhecê-la. Afinal, se conhecessem realmente, não confundiriam alhos com bugalhos.

Mitos são apenas mitos

Outros equívocos são mais engraçados. No caso, a palavra menas. “Menas não existe” afirmam. Claro que existe! Se alguém fala, é porque existe. Vários falantes a empregam, outros vários os corrigem. E isso só acontece porque ela existe, tem vida (isso me lembra uma história que li em um dos livros do professor Sírio Possenti: quando Galileu pediu para ver as luas de Júpiter, alguns filósofos responderam que, se Aristóteles não falava das luas, então elas não existiam). O melhor dicionário em língua portuguesa, o Houaiss, afirma o seguinte sobre menas.

“No Brasil, na linguagem coloquial descolarizada, ocorre a forma deturpada menas (pron. indef.), em concordância de gênero com o subst. que se segue”.

Enfim, pode dizer dela qualquer coisa: dói no ouvido, é errada, gente inteligente não usa… Mas não que não existe. Se alguém fala é porque existe, oras!

Outro ponto engraçado são as várias frases de cursinho: “mim não conjuga verbo”, “agente só secreto”, entre outras. Da próxima vez que você falar “para mim pegar” e alguém disser “mim não conjuga verbo”, experimenta perguntar “por que”? Nem sempre dá certo, mas garanto que você vai ouvir um sonoro silêncio na maioria dos casos. Ou então uma resposta mais sofisticada do tipo “não sei, só sei que é assim”.

“Muito arrogante, você”, deve estar esbravejando alguém lendo isso. Mas esse não é meu objetivo. Quero apenas refletir sobre o “eu sei mais que você porque falo meia dúzia de regências de acordo com a gramática normativa”. Aqui, é importante esclarecer que mitos, como “português é a língua mais difícil do mundo”, “ninguém sabe português direito”, “brasileiro fala tudo errado”, “estão assassinando a língua portuguesa”, entre outros que são escutados e propagados diariamente, são isso mesmo que você leu: apenas mitos.

Se somos humanos…

O que é saber uma língua?

Em uma entrevista no I Salão Internacional do Livro da Paraíba, a jornalista (e minha professora) Agda Aquino perguntou ao professor Pasquale Cipro Netto sobre a reclamação recorrente de que “o português é muito difícil”. Bem humorado, ele respondeu:

“De fato, é muito difícil… para o húngaro, para o japonês, para o chinês. O mais engraçado é que as pessoas dizem `eu não sei falar em português, já notou isso?´”

De fato, chega a ser engraçado quando paramos para pensar na afirmação “não sabemos falar português”. Imagine os alemães dizendo que não sabem falar alemão ou os americanos dizendo we can´t speak english (nós não sabemos falar inglês). Esquisito! O que leva as pessoas a pensarem que não sabem falar português é a confusão que foi criada ao longo dos anos entre língua, gramática normativa e ortografia.

O mito de que “não sabemos português” vêm de dois fatores principais: primeiro, o fato de que falamos com uma facilidade muito grande, sem pensar. Falar é algo natural. Para falar uma língua, o único requisito é que sejamos humanos. Aliás, nesse ponto não temos escolha: se somos humanos, então sabemos falar uma língua. Daí, algumas pessoas associarem conhecimento a algo que não seja tão fácil assim, a uma reflexão consciente, difícil e trabalhosa. Logo, saber uma língua não pode ser algo tão fácil assim.

Falando normalmente

Segundo, a escola nos inculcou, durante longos anos, a ideia de que não conhecemos nossa língua. Infelizmente, ainda impera nas salas de aula (e na imprensa brasileira) que “saber português” é saber distinguir um complemento nominal de um adjunto adnominal ou conhecer como conjugar o verbo trazer no pretérito mais que perfeito composto do modo subjuntivo. Quando na verdade, se abríssemos os ouvidos constataríamos algo bastante simples: todos os que falam é porque sabem falar. Se alguém fala português é porque sabe falar em português. Se não soubesse, não falaria. Mais simples do que isso, só dois disso. Os brasileiros falam o dia todo em português (uns falam até demais). Ora, não poderiam fazer isso se não soubessem falar português.

Vou aplicar uma analogia do professor Mário Perini a fim de ser mais exato: eu sou capaz de andar. Aliás, venho fazendo isso durante toda minha vida. Nunca fui chamado atenção por isso. Ninguém nunca me falou que ando errado ou que deveria fazer um curso para aprender a andar. Esse conhecimento, aliás, ajuda bastante no meu dia-a-dia. Entretanto, não sou capaz de explicar os processos musculares, nervosos, dentre outros, que ocorrem quando coloco em prática essa minha habilidade natural. Baseado nisso, pergunto: eu sei ou não sei andar?

Note bem, eu posso não ter consciência do tipo de conhecimento inconsciente que exerço para andar. Mas que sei andar, isso eu sei (acabei de dar uma volta no meu quarto a fim de confirmar essa teoria). De qualquer forma, o que nos interessa nesse ponto é o seguinte: tenho um conhecimento inconsciente, implícito, eficiente e complexo a fim de falar. Eu sei falar português muito bem, obrigado! Talvez, eu não saiba explicitar o que faço para falar: quais regras sigo, como as sigo e por que as sigo. Ninguém diria que ando de qualquer jeito, só porque não tenho um conhecimento explícito dessa atividade.

A mesma coisa vale para minha língua. E esse meu “conhecer português” não foi adquirido na escola: foi algo que aprendi de forma natural e espontânea (da mesma forma que andar). Por isso, a conclusão é simples e óbvia: todo mundo que fala em português é porque conhece (e muito) a língua portuguesa. Daí que, independente de saber se desde se escreve junto ou separado, isso não melhora meu convívio linguístico. Vou continuar falando e me comunicando normalmente. E todo mundo vai entender. Sendo assim, essas campanhas podem até ser engraçadinhas, bonitinhas e outros inhas. Mas não têm relação nenhuma com o “bem do nosso português”.

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[Bruno Ribeiro Nascimento é graduado em Comunicação Social, João Pessoa, PB]