Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dines denuncia Requião

Reúnem-se aqui três artigos de Alberto Dines e um de Roberto Requião. As circunstâncias da polêmica entre o jornalista e o senador estão documentadas neste OBSERVATÓRIO (edições de 5/3/97, de 20/3/97 e esta, de 5/4/97). 

Entretanto, é necessário acrescentar que Alberto Dines foi alvo de críticas torpes por parte do senador Requião durante a edição de 17/3/97 do programa Roda-Viva, da TV Cultura, de São Paulo, sem que lhe tenha sido dada na ocasião a oportunidade de se defender dos ataques. 

No dia 31/3/97, o apresentador do Roda-Viva, Matinas Suzuki, leu texto enviado por Dines em que o editor do OBSERVATÓRIO. Deplorava  não ter sido convidado a participar do programa, não ter sido sequer avisado de que ele iria ao ar, para poder eventualmente manifestar-se por fax, e deplorava sobretudo que o senador tivesse substituído por agressões, ante o silêncio de seus entrevistadores, a discussão aberta das atividades pregressas que lhe valeram cassações de mandatos na Justiça. 

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Em 24 de março de 1997, o Jornal do Brasil publicou o seguinte artigo de Alberto Dines, editor do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

Alberto Dines 
O arquétipo fascista
 
(Achegas para uma psicopatologia política) 

"O fascismo italiano não existiria sem Mussolini, o neofascismo francês contemporâneo seria irrisório sem Le Pen. Não se pode examinar o fenômeno político fascista sem o motor psicopatológico dos seus ícones. 

Autoritários, truculentos, impetuosos, capazes de siderar o bom-senso dos indivíduos e das massas para levá-los à insanidade, o führer, o ducee o caudilho impõem-se através da emasculação dos interlocutores. 

Aliás, no fascismo não há interlocutores – o Outro – nem outros. Desaparece a alteridade, o diálogo, a individuação e as diversidades. Sobram apenas as clonagens do chefão no coro uníssono. 

Carisma, para os gregos, era o nome de um atributo divino, mágico, que, aos poucos, desviou-se para chegar a sinônimo do furor diabólico. O carisma fascista, diferente da sedução do discurso racional e humanista, apela para os instintos, gesta-se nas repressões, frustrações e nos desvãos sombrios da natureza humana. A indignação, pura e simples, dissociada de qualquer elaboração mental, produz esgares e espasmos, aciona nervos e músculos, anestesia os processos cerebrais. Puro animalismo. 

O fascismo é reducionista – eu sou a verdade, se você não concorda, é mentiroso, logo, deve ser destruído. Que sabe valer-se do vasto repertório democrático para liquidar a democracia, já o testemunhamos algumas vezes neste século dos extremos em que o fascismo mostra durabilidade inquietante. 

Há um arquétipo, ou protótipo, fascista no qual combinam-se a prepotência, a violência, o narcisismo (físico e mental) e a limitação intelectual. Mas não existe um arquétipo conservador, liberal ou mesmo social-democrata porque estas são posições políticas e filosóficas dissociadas de perturbações ou desvios psíquicos. Daí porque um socialista democrático pode, ao longo da vida, encaminhar-se para o conservadorismo (caso de Paulo Francis) ou vice-versa (caso de Tristão de Athayde). 

Esta é a questão: a racionalidade pode nos conduzir numa direção ou outra. Quando se buscam os caminhos da verdade as nuances são ricas e infinitas. Mas a irracionalidade dos donos da verdade é linear, tensa, explosiva e implosiva. Suicida, só leva ao beco sem saída, à catástrofe. 

O fascista não é um ser moral, não faz cogitações sobre o que é certo ou errado, mas o moralismo faz parte do discurso fascista porque o seu paroxismo precisa ser alimentado permanentemente com a chama sagrada da sua pureza e a noção de que veio para evitar o apocalipse causado pela raça dos 'impuros'. Que este moralismo é apenas uma fachada, recurso demagógico para engabelar os inocentes, disto a história recente também está repleta de exemplos quando, dos escombros dos regimes fascistas, escorre o mar de lama represado pelo autoritarismo. 

No momento em que seu farisaísmo moralista é desmascarado o fascista exalta-se e escouceia porque no seu feixe (fascio) de varas punitivas a mais preciosa é aquela que brande para fustigar os corruptos, os aproveitadores da miséria. Sendo ele dono exclusivo da capacidade de condenar e castigar, a hipótese de perdê-la é o supremo vexame. 

Mas há outro arquétipo, antípoda no esquema partidário, igual na patologia psíquica. Chamemo-lo de stalinista porque transita sob vários uniformes partidários (até trotsquistas). É aquele para quem os fins justificam os meios, o sanguinário salvacionista, monstro moral que em nome da redenção dos oprimidos faz da opressão sua arma. 

Já andaram juntos e não foi por acaso ou oportunismo político. A esquerda revolucionária alemã assistiu, siderada, os primeiros desmandos hitleristas na Áustria e Alemanha. Alegavam tática, na verdade era imantação psíquica mesmo. Os radicais da esquerda assistem, eletrizados, ao galope das falsas valquírias não apenas em função do preceito 'quanto pior, melhor' mas porque não conseguem distinguir as nuances entre vício e virtude, entre o que é verdadeiramente moral e o que se finge de moralista. 

A CPI dos Precatórios, entre outras coisas, está sendo um laboratório para observar a gênese de decisivas transformações em nosso cenário. A principal delas é a sincronia entre os vários poderes e agências públicas. Mas, além disso, está visível a fermentação de um processo político, didático, mas perigoso se não for controlado 
O atual dono do fascio, Roberto Requião, abomina que lembrem aos seus legionários que, dos quatro mandatos que teve, dois foram cassados por prevaricação. Seu atual mandato no Senado da República está sub judice aguardando decisão do TSE. 

Do ponto de vista legal e moral, está inabilitado para assumir-se como paradigma de honradez nem pode seqüestrar, como pretende, os feitos da esplêndida cruzada saneadora iniciada pela imprensa. 

Senador virtual, fascista real, não vai calar aqueles que ousam lembrar sua vida pregressa."
(c) Jornal do Brasil, 24/3/97. 

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No dia 27 de março, o Jornal do Brasil publicou resposta do senador Roberto Requião. Após longa recapitulação auto-elogiosa de sua atuação política no Paraná, Requião diz despudoradamente que não sabe até hoje como foi parar em sua propaganda, na campanha eleitoral em que se elegeu governador do Paraná, em 1990, o depoimento falso de um suposto pistoleiro a serviço da empresa de colonização de seu adversário, José Carlos Martinez. (Mais adiante, inadvertidamente defende a fraude da propaganda eleitoral, ao chamar o personagem de 'supostamente falso pistoleiro'.) 

O artigo assinado por Requião usa contra Alberto Dines o argumento segregacionista de que ele é 'recém-caído em Curitiba (….), distante da história da cidade e do estado'. Sintomaticamente, não repele diretamente a qualificação de neofascista. E, ainda mais sintomaticamente, apesar de longo o texto (1.391 palavras), não usa nele uma só vez a palavra 'democracia'. O fato de ser pronunciada em vão muitas vezes por dia, todo santo dia, não tira da palavra democracia sua densidade política e sua carga simbólica.

O texto de propaganda política assinado por Requião não tem conteúdo nem forma que mereçam abrigo neste Entre aspas, mas, para que o leitor tenha a íntegra da polêmica, é aqui reproduzido (ver "Eu confesso, Alberto", texto de Requião no final desta página). Um segundo artigo por ele assinado, publicado no Jornal do Brasil em 2/4/97, puramente difamatório, não é reproduzido aqui. 

Forçoso é reconhecer que o episódio da CPI dos Precatórios vem rendendo ao senador do PMDB paranaense publicidade com a qual não poderia sonhar alguns meses atrás. 

Com a ajuda da Internet, pode-se examinar o exemplo da Folha de S. Paulo, único jornal brasileiro que mantém em meio eletrônico a íntegra de seus arquivos (desde as edições de 1994). Os números podem variar um pouco de um jornal para outro, mas a proporção é mais ou menos a mesma em todos. 

O nome de Requião aparece 208 nas 365 edições de 1994 da Folha de S. Paulo de 1994 (quando houve campanha eleitoral), 96 vezes nas edições de 1995, 105 vezes nas de 1996, e 168 vezes nos 74 primeiros dias de 1997, o que significa que, se conseguir, como pretende, ficar o ano todo sob os holofotes, chegará, mantendo-se a proporção, à marca anual de 828 citações. 

O que confere especial relevo às manifestações de Alberto Dines – e a declarações feitas pelo cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, à Folha de S. Paulo e ao Jornal do Brasil (ver texto abaixo), assim como a reportagens de Maria Cristina Fernandes na Gazeta Mercantil – é que toda essa exposição na imprensa teria, sem elas, deixado na sombra fatos cruciais a respeito da trajetória política de Roberto Requião.

(Mauro Malin

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Em 31 de março de 1997, o Jornal do Brasil publicou a resposta de Alberto Dines, abaixo reproduzida. 

Alberto Dines 
A República do Galeão e o Lager do Requião
 

"Escondido atrás de uma imunidade que não merece, recebendo um salário indevido, o senador virtual que atende popularmente pelo nome de Requião, depois de tomar a sua dose diária de gardenal (ou mogadon?), assinou o texto que algum assessor, semi-alfabetizado, porém pago pelo contribuinte, lhe preparou (JB, 27/3, p. 8). 

A nova vaca sagrada da República goza de estranhos privilégios tanto na Câmara Alta, para a qual já foi desqualificado pela Justiça, como fora dela. Causa espanto que jornalistas conhecedores da fauna brasiliense e que até novembro referiam-se ao senador-sub-judice como 'aquele', curvem-se agora aos caprichos desta prima-dona tardia e bolorenta, neofascista assumido, concedendo-lhe o privilégio de escoicear em tréplicas infinitas. Mesmo quando o replicante ofendido não dispõe de tribunas efetivas a não ser um boletim quinzenal na Internet. 

É pela Internet que começo. O OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA (, serviço público destinado a conscientizar a sociedade para o desempenho da mídia), foi o primeiro veículo a tratar do Pittagate tão logo revelado pelo Jornal da Tarde durante a última temporada eleitoral (nossa edição de 5 de outubro). Em seguida, o Estadão revelou a extensão da fraude minuciando o esquema da negociação dos precatórios. 

Diante da gravidade das denúncias, o Senado decidiu criar uma CPI, mas, por traquinagem ou manha política do então presidente da Casa, José Sarney, entregou a relatoria a um político que amargava um merecido ostracismo político, cassado que fora pelo TRE do Paraná. Mesmo ignorando um processo que corria na suprema instância da justiça eleitoral, quem escolheu ou referendou a escolha de Requião para liderar a CPI não poderia ignorar sua conduta, decoro e histórico psiquiátrico que levou outro senador, antigo comparsa depois desafeto (Orestes Quércia), a designá-lo como Maria Louca

Durou três meses o solo de truculência de Requião até que a Gazeta Mercantil (edição de 3/3/97) fez aquilo que o resto da imprensa deveria ter feito quando em novembro alguém resolveu ressuscitar o monstro moral chamado Requião: publicou a folha corrida daquele que pretendia ser o supremo árbitro da probidade nacional. 
Na edição de 5 de março do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, num texto de 132 linhas sobre a Anatomia do Pittagate (e os seus desdobramentos na mídia), as revelações da Gazeta ocuparam apenas 19 linhas. Como Requião não tem condições psíquicas para ler textos de mais de um parágrafo e como a edição do OBSERVATÓRIO foi profusamente reproduzida, imaginou que seu currículo estava sendo ali publicado em primeira mão. 

OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA não tem como impedir que os seus textos sejam republicados ou reproduzidos no rádio e na TV. Ao contrário, sua equipe agradece estas manifestações de solidariedade profissional porque só assim um boletim on-line, acessível à minoria que dispõe do equipamento, pode chegar à grande imprensa e ao destinatário final, a sociedade. Tanto assim que no dia 10 de março, o Jornal da Tarde ampliou substancialmente o perfil de Requião traçado pela Gazeta
Mas o ensandecido já tinha um bode-expiatório: este editor do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA. Que, entre os vários trabalhos nos quais está ostensivamente engajado na área de formação e treinamento de jornalistas, fez o planejamento da área de mídia da Uniamérica, criação do governador Jaime Lerner (antigo adversário do senador-sub-judice). 

Estes são os antecedentes que nem um pusilânime como o senador-sub-judice pode contestar. O que o fez perder aquele mínimo de decoro que deve aos pares e eleitores foi meu artigo O Arquétipo Fascista (JB, 24/3, cujo subtítulo Achegas Para um Psicopatologia Política foi infelizmente suprimido). 

O novo Mussolini tupiniquim, que, como o seu êmulo, usa um discurso moralista, de esquerda, para camuflar sua irreprimível personalidade fascista e racista, não pode admitir que, de repente, aquelas 19 linhas num boletim da Internet possam interromper o acalentado projeto de passar a limpo a sua vida pregressa para candidatar-se à Presidência da República no lugar de Paulo Maluf. 

Este é o ponto: Requião não é o anti-Maluf. É Maluf redivivo, arrogante, inescrupuloso, farisaico, mistificador como o protótipo. A carga que o senador-sub-judice fez contra os social-democratas e os liberais em política (incluindo-me entre ambos), denota um mastodonte ideológico e um gorila em matéria de cultura. 

Às custas do erário público Requião e seus assessores ocupam-se em jogar os seus próprios dejetos num jornalista que está cumprindo com os deveres de seu ofício. Deveriam estar lutando para levantar o sigilo bancário e telefônico de alguns senadores cuja associação ou cumplicidade nos escândalos dos precatórios é mais do que evidente. Requião não quer, precisa preservar os seus parceiros – por isso votou contra o levantamento do sigilo dos senadores. 

Requião está fazendo da CPI o que Carlos Lacerda e suas mal-amadas (com farda ou sem farda) fizeram em 1954 com o IPM (Inquérito Policial-Militar) montado pela FAB no Galeão, para apurar a autoria e mandantes do atentado que matou o Major Rubem Vaz. 

A República do Galeão, como ficou conhecido aquele desvario, não queria saber quem atirou em Lacerda e acertou no militar. Queria linchar o presidente Getúlio Vargas, derrubá-lo. Para isso, atropelou todos os procedimentos legais e jurídicos, montou uma formidável cruzada pela imprensa – não foi a única – levando o Vargas ao suicídio. 

A República do Galeão não foi um fórum para fazer justiça. Foi um patíbulo para saciar a ensandecida ambição de um político (muito mais qualificado do que Requião) mas que desempenhou o mesmo facinoroso papel. 

A República do Galeão, em nome da democracia, atropelou a democracia e a partir dela escreveu-se o mais trágico episódio da história política brasileira.

A CPI está sendo desviada por Requião (e aqueles que ele esconde) numa farsa. É um Auto da Fé, um campo de concentração, um lager, para humilhar aqueles que o preconceituoso Requião quer liquidar por antecipação. 

As farsas jurídicas de Stalin e Hitler não podem servir de modelo para uma nação que escolheu definitivamente a democracia como modelo político e civilizatório. 
No seu revelador destampatório, Requião deblatera contra os liberais e os 'louros'. Queria dizer judeus? O nosso John Wayne porventura receia assumir seus preconceitos? Ora, Roberto, este tipo de subterfúgio não lhe fica bem. Vá em frente, assuma tudo o que sente. Repressão faz mal à alma, exige dose maior de calmantes. 

Hitler dizia que Thomas Mann era decadente. Mesmo os personagens decadentes de Thomas Mann – eu seria um deles segundo o apurado gosto de Requião – tinham uma decência e dignidade que os escorpiões recém-escapados dos porões da malandragem política jamais alcançarão." 

(c) Jornal do Brasil, 31/3/97. 

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Em 7 de abril de 1997, o Jornal do Brasil publicou um terceiro artigo de Alberto Dines, que em seguida se reproduz. 

D.Paulo dixit 
(Notas para entender a violência – de Diadema à CPI)

Alberto Dines

"O país olha-se no espelho e se envergonha: as cenas brutais que oJornal Nacional flagrou na última segunda-feira e hoje correm o mundo como o mais novo retrato da sociedade cordial não podem ser atribuídas seletivamente à PM paulista. 

Os bandidos fardados da Paulicéia (em nada piores que os das outras polícias estaduais), guardiões da lei e seus primeiros fraudadores, são uma ponta do processo, a mão do diabo; na outra ponta, estamos todos, mais uma vez, espectadores passivos na melhor das hipóteses, de um formidável processo de degradação moral que os partidos não discernem e aos governantes escapa. 

Este 'não é comigo' generalizado e aberrante, compensado pela cólera contra 'eles', os 'outros', é a forma elitista, escapista e discricionária de escapar da consciência culposa, da vergonha cidadã, sem as quais inexistem solidariedade, responsabilidade e coesão. 

O pacto social é rompido diariamente, em todos os níveis e estamentos, os direitos e a dignidade pessoal são profanados, transgredidos e agredidos em todas as oportunidades. A vida humana é ceifada como em guerras. O que estamos revendo na televisão em diferentes ângulos, ritmos e contextos não é um vídeo sobre o submundo distante, é uma janela de nossa realidade concreta, palpável, corriqueira, enraizada. E, se não a vemos com mais freqüência, é porque a mídia – que a deveria magnificar com mais freqüência – anda como barata tonta, eletrizada pelas banalidades e pelos escândalos. 

Teorizar algidamente sobre esta barbárie pode parecer exercício retórico de universidade francesa mas ficar patinando na indignação acaba em 'evento', passeata, carreata ou churrascada com a presença de umatroupe de celebridades. Junto com a repulsa moral é preciso identificar com precisão os crimes cometidos pelos rambos paulistas para corrigir as perturbadoras disfunções que os geraram. 

Advogados são bons para tais diagnósticos, razão pela qual sirvo-me do que disse um deles na TV: os agentes dos hediondos crimes não perceberam os limites estabelecidos pela sociedade organizada e confundiram as funções de guarda, acusador, juiz, carcereiro e verdugo fazendo tudo ao mesmo tempo. 

O justiçamento sumário de suspeitos nos remete à antiguidade, deita por terra todas as conquistas da humanidade em matéria de direitos ao longo de dois milênios mas, sobretudo, agride o regime democrático e amputa-lhe o braço legal. Votar, nestas circunstâncias bárbaras, passa a ser fingimento, ilusão de que as instituições funcionam. 

O agente da ordem, o fiscal da sociedade e mesmo o inquiridor ou investigador não têm poderes para acusar, julgar e executar a sentença. A arma na cintura ou o diploma com os poderes especiais não os autoriza a atropelar as exigências, jurisdições, procedimentos e rituais montados para a defesa do cidadão e da sociedade. 

Os atentados à vida e à dignidade cometidos em Diadema, embora manchados com sangue e brutalidade, não se diferenciam, em tese, dos métodos truculentos e aviltantes empregados pelo Relator da CPI dos Precatórios, o Senador Requião, finalmente escancarados pela imprensa.

A justiça administra-se em locais convencionados, os tribunais; os depoimentos para a instrução dos processos não podem ser colhidos aleatória e clandestinamente, devem ter uma chancela legal e as informações acrescentadas aos autos ou relatórios não podem ser contrabandeadas para a imprensa antes da conclusão do inquérito sob pena de infringirem o segredo de justiça e viciarem, na origem, a lisura das conclusões. Códigos devem ser respeitados e a CPI foi constituída justamente para diligenciar sobre as infrações aos códigos. 

Não se trata de preciosismos e firulas forenses. Se no Senado da República imperam os desmandos, a prepotência, intimidação e os constrangimentos, lá em Diadema a bandidagem fardada faz a sua leitura desta mensagem – o resultado aí está em todas as televisões do mundo. 

Não é uma relação estanque entre causa e efeito mas um prolongamento, direto e contínuo, entre um brutamontes engravatado com diploma de advogado e senador e outros brutamontes, menos enfatiotados e ilustres, igualmente perniciosos, em uniforme de servidor da sociedade. 

Agora, acuado, Requião esgoela-se: 'faço o que bem entendo'. Antes de serem presos, os policiais de Diadema nem precisavam berrar suas justificativas, também faziam o que bem entendiam. 

Se fosse apenas questão de compostura e decoro, o cardeal arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, não se abalaria para entrar no assunto e, horas antes de se internar para uma operação na vista, sugerir 'uma CPI para Requião… Continuo achando que deveriam investigar quem está investigando…' (JB, 1/4/97, p.3). 

D. Paulo é o campeão na luta pelos direitos humanos. Enfrentou a ditadura, hoje é a nossa reserva moral, a consciência crítica da nação. D. Paulo conhece onde começam e onde acabam os abusos e arbitrariedades. 

D. Paulo dixit." 

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D. Paulo Evaristo Arns 

"O cardeal arcebispo de São Paulo. Dom Paulo Evaristo Arns, sugeriu ontem 'uma CPI para Requião (senador Roberto Requião, relator da CPI dos Precatórios'. (….) Dom Paulo confirmou seu protesto contra o cerco a Celso Pitta. 'É só ele que está na berlinda? Ninguém fala de outros prefeitos ou do chefe dele (Paulo Maluf)? Eu protesto, sim. Tudo indica que há preconceito, que há racismo, porque este prefeito é um homem de cor!' 

Dom Paulo começou citando 'a opinião do político mais sério' que ele conhece, 'o governador do estado do Paraná, Jaime Lerner': 'Continuo achando que deveriam investigar quem está investigando…' 

Como o cardeal nasceu em Santa Catarina, alguns pensaram, de início, que se tratasse do senador Vilson Kleinubing (PFL). Mas ele mesmo explicitou: 'Nasci em Santa Catarina, mas fui criado no Paraná. Tenho sete irmãos lá e conheço esse assunto. Eu me refiro ao relator da comissão, Roberto Requião'." 

("D. Paulo sugere CPI para Requião", Jornal do Brasil, 1/4/97.) 

 

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Roberto Requião 

"Como tantos de minha geração, bati-me no movimento que, no final da década de 50 e no início dos anos 60, buscou sacudir o Brasil de sua pasmaceira secular. As reformas. Ou a revolução. Com a generosidade e a impetuosidade juvenil, fomos às ruas, às assembléias estudantis, aos sindicatos, às fábricas, ao campo, às igrejas e quartéis. 

À nossa estação Finlândia, ao encontro da mais bela das utopias imaginadas pelo homem. A igualdade, a liberdade, a fraternidade. A consigna de 1789 revista. Marx, Lebret, Guevara, Sartre, Celso Furtado, Josué de Castro, Caio Prado Jr. e, por que não, Jucelino Brasil. Uma sociedade sem classes, sem a dor, a humilhação, a opressão e a ofensa capitalistas. 

Na busca desse sonho, corremos caminhos nem sempre compatíveis com o objetivo final. Mas eram etapas, eram passos, eram sapos a engolir, dizíamos. Assim, defendemos a posse de Jango. Com ele, ou apesar dele, radicalizaríamos pelas 'reformas de base'. E o golpe coloca-nos nas barricadas de resistência à ditadura. 

Eleito deputado estadual, em 1982, formei com outros 10 deputados do PMDB, na Assembléia Legislativa do Paraná, o que a direita classificava como o 'Grupo dos 11'. Porque não cedíamos em princípios. Não negociávamos posições programáticas por cargos. Porque faltava mais um ato no avanço contra o regime militar: derrubá-lo. 

Candidato à Prefeitura de Curitiba, na primeira eleição direta nas capitais, depois que os militares cassaram esse direito, tive, antes de tudo, que vencer as poderosas resistências dos conservadores dentro e fora do PMDB ao meu nome. As bases do partido, em uma convenção memorável, deram-me a legenda. 

Meu principal adversário: um antigo servidor dos militares; duas vezes prefeito nomeado de Curitiba; a primeira, por Haroldo Leon Peres, que ganhara o governo do Paraná, depois de ter-se destacado como o mais esganiçado líder da Arena na Câmara dos Deputados, defendendo com desassombro a tortura, a pena de morte para os 'subversivos', as cassações de mandatos; indicado por Leon Peres e confirmado por Médici. 

Na Prefeitura de Curitiba, em um curto mandato (dois anos e oito meses), busco saldar pelo menos parte da incomensurável dívida social herdada das satrapias arenistas. Casa, emprego, comida, escola, creche, postos de saúde, saneamento, segurança, lazer, transporte digno e barato. É na defesa desses interesses populares que vou ter os primeiros choques com o Judiciário. Na questão das tarifas do transporte coletivo, por exemplo. Quebro o monopólio do cartel do transporte, refaço a planilha de custos das tarifas e vejo desabar sobre mim ações, petições, embargos, liminares. Era o início de um longo e tortuoso calvário. 

Candidato ao governo do estado, em 1990, vejo reunidos contra mim todos os interesses contrariados. Os conservadores, sedentos de vingança, assanhados com a possibilidade de uma vitória do candidato de Collor no Paraná, não medem recursos, calúnias e pressões. Enfrento-os. Denuncio-os. E, particularmente, denuncio o massacre de posseiros e pequenos agricultores perpetrado pela empresa colonizadora de meu adversário, no Oeste paranaense. Uma 'colonização' feita a bala, a execuções sumárias, à tocaia covarde, a invasões de terras. Denuncio e documento as denúncias. Faço veicular no horário eleitoral dezenas de depoimentos, pilhas de documentos. 

Só que, entre tantos depoentes, um deles, apenas um, não correspondia à sua verdadeira identidade. Uma armação de meu adversário diante da derrota inevitável? Um 'laranja' plantado propositalmente para desmoralizar a denúncia? Ainda não sei a resposta. Mas isso foi o que bastou para tentarem desclassificar as minhas acusações, como se, hoje, um possível falso depoimento sobre o holocausto fosse capaz de anular o holocausto. 

No governo do Paraná, de saída, trombo com uma forte pressão corporativa do Judiciário. Resisto. Nego os aumentos abusivos reivindicados e não dou ao Judiciário a liberdade de ele mesmo fixar seu orçamento e seus vencimentos. É o quanto basta. Rebelam-se. Pressionam-me com as mais descabidas decisões. Tudo o que for contra o governo, despacham favoravelmente. 

Querem que eu use a polícia e retire à força e à violência invasores de terras. Nego-me a cumprir a ordem judicial. Querem que eu desaloje sem-tetos. Recuso-me ao uso da polícia. Opto pelo diálogo, pelo entendimento entre as partes. Querem que eu invada uma universidade ocupada pelos estudantes. Nego-me à truculência. Querem que eu engula tarifas abusivas no transporte coletivo. Desconheço a decisão. Querem que eu não promova licitações de linhas de ônibus, cujos contratos venceram. Convoco a licitação. Querem que eu pague precatórios com valores astronômicos e injustificáveis. Devolvo os precatórios ao Tribunal, publicamente, pela imprensa. 

Resultado: a pretexto do depoimento do supostamente falso pistoleiro, em meu programa eleitoral, na campanha de 90, cassam o meu mandato de governador. A vingança, pequena, medíocre, é fulminada, em poucos dias, com a anulação do processo, em Brasília. A cassação era uma vergonha jurídica, de cobrir de vexame a biografia dos juízes. 

Concluo o meu mandato de governador e candidato-me ao Senado. Em um só dia, gravei toda a minha participação no horário eleitoral. Dizendo: Quero que esta eleição seja um plebiscito. Se os paranaenses consideraram o meu governo digno, honrado e realizador, votem sim. Do contrário, digam não à minha candidatura. A resposta: tive perto de 300 mil votos a mais que o candidato eleito ao governo do estado. Não gastei, em toda a minha campanha, mais que gastaria um candidato a vereador. 

Mas a vingança dos conservadores, dos empreiteiros e negocistas que tiveram seus interesses contrariados não se aplacara com a vigorosa manifestação popular. O próprio TRE do Paraná não se conformou. E armou mais uma. Com base em um processo absolutamente ridículo, inconsistente e inverossímil, dois anos depois de minha posse, decide cassar o meu mandato de senador, assustando e constrangendo até mesmo os meus adversários mais ferozes. 

Introduzi essas rápidas anotações sobre a minha vida pública para, agora, responder a um texto do sr. Alberto Dines, publicado neste jornal, no dia 24 de março. Recém-caído em Curitiba, assalariado do governo do Paraná, distante da história da cidade e do estado, o senhor Dines, depois de longa introdução, fala em dois mandatos cassados por 'prevaricação'. 

Ele se engana. Responde a 37 processos. Todos por prevaricação da espécie. Eu confesso, Alberto, prevariquei ao denunciar o assassinato de dezenas de posseiros, prevariquei ao recusar o uso da força para massacrar sem-terras e sem-tetos; prevariquei ao negar instruir a polícia a bater em estudantes, prevariquei ao não permitir que o Judiciário fixasse seus vencimentos à margem da lei e do orçamento; prevariquei ao devolver pela imprensa precatórios biliardários e injustificáveis; prevariquei ao não aceitar licitações viciadas; prevariquei ao não aceitar aditivos a contratos já feitos com o estado; prevariquei ao fixar tarifas justas para o transporte coletivo; prevariquei ao abrir os arquivos do Dops, revelando os porões da ditadura no Paraná. Eu confesso, fiz tudo isso e muito mais. 

É dessas prevaricações e desse moralismo que sou feito, sr. Dines. Que cômoda a sua posição. A sua e de alguns falsos liberais (Ah! Os liberais brasileiros, que piada! Golpistas em 55, golpistas em 61, golpistas em 64, golpistas hoje). Para tentar justificar o que foram ou que nunca foram, a sua renúncia à decência, recorrem aos velhos e carcomidos chavões. Sofismam. Contorcionam-se. E toda luta pela moralidade classificam de 'atitude pequeno-burguesa' ou fascista! Quanto a isso, senhor Dines, há uma atualidade em Marx, Sartre e até mesmo em Flaubert, que o senhor, em sua infinita e prepotente sapiência, deveria saber. 

Não tenho mais nada a dizer ao sr. Dines (ao seu patrão, sim, e muito!). O sr. Dines, na verdade, afigura-se a mim como o personagem de Visconti em Morte em Veneza. Amanhece, a maquiagem escorre e ele já não é mais uma coisa ou outro. Não é o que foi. Não será o que pretendia. 

Por fim, uma observação, sr. Dines. A esquerda revolucionária alemã não assistiu siderada aos primeiros desmandos hitleristas. A esquerda revolucionária alemã, Rosa Luxemburgo à frente, havia sido impiedosamente exterminada, em 1919/20, quando os ancestrais das SS tingem a Alemanha com o sangue dos comunistas. Um verdadeiropogrom da, talvez, única força capaz de resistir ao avanço nazista. Um massacre, diga-se, sr. Dines, a que os liberais, os social-democratas, os socialistas 'loiros' assistiram impassivelmente. Era a antecipação dos poemas de Maiakovski e Brecht. Não era com eles. Mas, quando chegou a vez deles, a esquerda revolucionária havia sido eliminada. Com a complacência de todos. Já que o senhor gosta de história, sr. Dines, colecione mais essa para o seu baú.

("Eu confesso, Alberto", (c) Jornal do Brasil, 27/3/97.)