Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O fumo ontem, o álcool hoje

Impossível deixar de fazer um paralelo entre as primeiras décadas do século 20 e o início deste século 21 no que se refere às drogas ditas “sociais”. Quem tem mais de 50 anos deve se lembrar de como as mídias bombardeavam a população com publicidade de cigarro. O cinema, outdoors e revistas estampavam os artistas soltando fumaça sexy, os machões musculosos com ares enigmáticos, os esportistas, os cowboys e as divas sempre acompanhadas dos pequenos cilindros brancos entre os dedos ou elegantes e longas piteiras. Entre eles, Marlene Dietrich, Clark Gable, Marilyn Monroe e dezenas de outros famosos que provocavam suspiros na população. Não existia produção de filme sem fumaça de cigarro ou charuto (ver aqui).

Na época, a mensagem era de que quem não fumava estava “por fora”. Bonito era aparecer nas fotos posando com um cigarro nas mãos. Entre os dedos, ele tornou-se símbolo de independência, aventura, prazer, sucesso e de aceitação social. E, por incrível que pareça, o fumo era associado à imagem do esportista. O marketing de cigarro atingia “em cheio” jovens que tentavam copiar seus ídolos e, em sua insegurança típica da idade, logo abraçavam a ideia e começavam a fumar. Para a indústria do fumo, quanto mais cedo começassem, melhor. Mais tempo de vida consumindo o tabaco.

O Estado arrecadava bilhões em impostos, a indústria tabageira gastava fortunas com publicidade, empregava muitas pessoas nas fábricas, e isto, aliado ao apelo de que o campo também dependia, em algumas regiões, do fumo, bastava para calar as vozes de quem exigia a divulgação das estatísticas e estudos sobre as mortes causadas pelo cigarro. Os dados eram guardados em segredo.

Cerveja a rodo

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o cigarro matou mais do que a soma de todas as guerras. A OMS afirma que, apenas no século 20, mais de 100 milhões de vidas foram ceifadas em virtude do vício (ver aqui).

Já o Atlas do Tabaco, da Sociedade Americana do Câncer e da Fundação Mundial do Pulmão, informou, durante a 15ª Conferência Mundial Tabaco ou Saúde, em Cingapura, que, apenas durante o ano de 2010, morreram 6 milhões de pessoas em virtude do tabagismo (ver aqui). O estudo apontou, também, que cerca de 80% dessas mortes aconteceram em países não desenvolvidos.

Hoje, presenciamos a leniência do governo brasileiro com outra droga – o álcool. A indústria da cerveja, bebida que praticamente faz a iniciação ao consumo do álcool, apontou um crescimento de 12% no ano passado, e o maior percentual foi detectado nas regiões Norte e Nordeste do país (ver aqui). As inúmeras publicidades da bebida atingem exatamente essa população que, ascendendo economicamente, se espelha em uma sociedade consumista, na qual beber é in. A mensagem subliminar é de que só se pode divertir e ser alegre com bebida, com álcool – beber é “massa”. A população, mais uma vez, atende aos apelos publicitários e se autodestrói (ver aqui).

As mensagens veiculadas nas diversas mídias contemporâneas atuam como no século passado. Só que hoje todo lar tem um aparelho receptor de imagens e somos assediados até dentro de nossas casas. São muitas as publicidades de cerveja – inclusive imagens subliminares da bebida. Durante a novela Avenida Brasil, dezenas de vezes, os protagonistas abriram uma garrafinha de cerveja, com toda naturalidade, como se isso fosse parte do dia a dia de pessoas ricas. Sem esquecer os jogadores de futebol do time “Divino”, dessa mesma novela, que faziam as comemorações do time sempre regadas a cerveja.

Dependência irreversível

A novela que sucede no mesmo horário, Salve Jorge, também conta com imagens que incutem no telespectador como é fino, elegante o ato de ingerir uma bebida alcoólica. Até mesmo em excesso, com cenas em que protagonistas se embebedam. Esse tipo de publicidade, inserida em um contexto no qual a maior parte dos que assistem ao programa e recebem a mensagem nem percebem ser publicitária, é muito perigosa e deveria ser proibida. Isso já acontece, por exemplo, na Europa, onde diversos países, já nos anos 1990, proibiram a veiculação da publicidade de bebidas com teor alcoólico e cigarro.

As mulheres, seja em virtude do estresse e da sobrecarga de trabalho, seja na luta constante pela autoafirmação, competindo com os homens, estão cada vez mais, somadas aos mais jovens, engrossando as estatísticas do consumo de bebidas alcoólicas (ver aqui). Todos esses fatos remetem ao século 20 e ao direcionamento da população para o consumo do fumo.

Só que, naquela época, quando começaram a divulgar o enorme número de doenças e a consequente mortandade provocada pelo tabagismo, a desculpa era a falta de informação e a afirmação de que as pesquisas sobre as doenças em decorrência do fumo eram guardadas a “sete chaves”. Contudo, atualmente, governo e população têm amplo acesso aos males pessoais e sociais provocados pelo alcoolismo (ver aqui). Não tem desculpa.

O álcool não apenas mata os que bebem. Causa uma dependência crônica, irreversível. O cidadão deixar de ser produtivo. O álcool causa acidentes, demência, mata, destrói famílias (ver aqui). A maioria das pessoas não sabe que basta a ingestão periódica de certa quantidade de álcool para, aos poucos, crescer gradativamente a quantidade e a consequente dependência do indivíduo, tornando-o alcoólatra. No Brasil, o percentual de pessoas adultas que bebe álcool em excesso já superou 18% em 2010 (ver aqui).

O governo na parede

Mais assustador ainda foi o resultado da pesquisa divulgada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), apontando que, já em 2005, 12,3% da população brasileira entre 12 e 65 anos eram dependentes de álcool. Significa nada menos que 5.799.005 pessoas alcoólatras já naquele ano no Brasil (ver aqui).

Muitos países lutam para controlar os problemas com o alcoolismo (ver aqui) e bebidas com teor de álcool são taxadas com altos impostos visando controle do consumo através do preço. Todas as nações onde existe um grande consumo de álcool per capita tratam o assunto como um grave problema social e econômico (ver aqui).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu e declarou, já nos anos 1950, o alcoolismo como doença. Nos últimos anos, essa organização acendeu o sinal amarelo para o Brasil, advertindo sobre o aumento do consumo de álcool dos brasileiros (ver aqui).

Passou despercebido pela população brasileira que as bebidas “frias”, de modo geral, teriam a alíquota de impostos majorados, mas, pasmem, a indústria cervejeira botou o governo na parede: se aumentar o imposto não vamos investir mais no Brasil. O governo cedeu (ver aqui). Fez um acordo e o aumento ficou para abril de 2013, parcelado em seis vezes. Uma “ajudinha” do governo federal à coitadinha da indústria cervejeira que emprega tanto e recolhe milhões em impostos (ver aqui).

Terreno para se expandir

A publicidade de bebidas vai continuar alimentando a mídia e angariando mais e mais consumidores. A Skol está lançando uma novidade: cerveja congelada, tipo sorvete. Assim, a história se repete – são os mesmos argumentos utilizados no século passado (ver aqui).

A Ambev (Companhia de Bebidas das Américas), que oferece dezenas de rótulos de cerveja como a Skol, Bohemia, entre outras, e que englobou a Antarctica e a Brahma, além de ser associada à cervejaria belga Interbrew, passou a ser a maior firma nacional em 21 de novembro, superando a Petrobras (ver aqui).

O governo continua privilegiando os interesses econômicos. A mídia não pauta a problemática como deveria por motivos óbvios. Se a mídia não divulga, a população não toma conhecimento.

Assim, da mesma maneira como ocorreu com o tabagismo no século 20, o alcoolismo vai encontrando terreno propício para se expandir no Brasil, em pleno século 21.

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[Magda Kaufmann é jornalista, Salvador, BA]