Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Machado de Assis, boate Kiss e as ideias fora de lugar

No livro Ao vencedor as batatas (1977), o crítico literário Roberto Schwarz elaborou uma pertinente crítica sobre a produção literária de Machado de Assis, tendo em vista o argumento de que, num país escravocrata, como era o Brasil do final do século 19, com uma estrutura produtiva pré-moderna, as ideias relacionadas ao mundo burguês europeu, como as relativas ao trabalho livre, ao progresso, a humanidade, só poderiam estar fora de lugar, razão por que, na boca dos brancos “homens livres” brasileiros, fossem eles republicanos ou monarquistas, o ideário do mundo das Luzes se tornava inevitavelmente uma comédia ideológica, sem vínculo ou compromisso algum com a transformação liberadora de um cotidiano tramado pela violência inominável da escravidão.

Investigando a produção literária de Machado de Assis, Roberto Schwarz observa que a singularidade das obras do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) advém de sua potência irônica para ficcionalizar as ideias fora de lugar da classe proprietária brasileira. Machado de Assis teria, pois, montado um burlesco retrato ficcional da comédia ideológica de nossa elite intelectual e econômica do final do século 19, razão por que, leia-se, Brás Cubas, protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas, não passaria, assim como tudo o mais na narrativa, de um quixotesco signo flutuante das ideias fora de lugar presentes no Brasil escravista, seja sob o ponto de vista amoroso, seja familiar, seja filosófico, estético, político, econômico ou qualquer outro.

Por outro lado, a leitura de Roberto Schwarz, embora oportuna (porque até hoje ainda vivemos de ideias fora de lugar) está ainda tomada por um viés colonizado, por aceitar a premissa do progresso e, por consequência, acreditar que a Europa do mundo das Luzes produzia ideias que correspondiam aos desafios de seu lugar histórico, produtivo, técnico-científico e social. Isso não é e nunca foi verdade pela singela razão de que todas as ideias estão fora do lugar, independente do contexto em que foram cunhadas. Num mundo marcado pelo sequestro das riquezas comumente produzidas, seja ele medieval, escravista, burguês, as ideias sempre estão fora do lugar.

Deploráveis ideias fixas

A grande sacada de Machado de Assis, portanto, foi a de ter produzido ficções fora de lugar, principalmente considerando os lugares naturalmente preestabelecidos para a Europa e para a periferia, num contexto em que esta tende a ser concebida como atrasada e bárbara e aquela como avançada e civilizada. Se se considera, como exemplo, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, o que se lê, do começo ao fim da trama, é a orquestração irônica de um narrador fora de lugar, o personagem Brás Cubas. Este, mais que assinalar o não lugar das ideias da classe proprietária brasileira, como um representante dela, evidencia em si mesmo ideias fora de lugar tendo em vista a própria história da humanidade, ultrapassando de longe a referência europeia. Sob esse ponto de vista, o capítulo VII da narrativa, Delírio, é exemplar porque nele o que fica registrado, através do delírio de Brás Cubas, é o delírio da própria humanidade, centro sísmico de uma avalanche de ideias fora de lugar.

Não quero dizer com isso que o conceito de ideias fora de lugar de Schwarz seja simplesmente mais um artefato teórico fora do lugar, produzido para analisar a literatura brasileira e mesmo o Brasil. Proponho não um rompimento crítico à proposta interpretativa de Roberto Schwarz, mas uma ampliação, através do seguinte argumento: Machado de Assis produziu uma literatura fora de lugar porque incorporou em sua produção criativa uma perspectiva cosmopolita, entendida como referência sem centro de gravitação. É assim que a proposta interpretativa de outro crítico da literatura de Machado de Assis, Abel Barros Baptista, mais que se contrapor aos argumentos teóricos de Roberto Schwarz, os complementa, pois, ao defender que a produção criativa machadiana não é brasileira, mas cosmopolita, Abel Barros junta a fome com a vontade de comer: Machado de Assis é o escritor sem lugar das ideias fora do lugar, sem dono ou propriedade autoral, linguística, estética, nacional, cosmológica.

O que está em jogo, nesse sentido, na produção literária de Machado de Assis, é a premissa de que a própria humanidade está ou é sem lugar, constituindo-se como uma orquestração de ideias fora de lugar sobre si mesma e o mundo que a rodeia, no seu perpétuo delírio possessivo ou territorializante. O pensamento estético da ficção machadiana assenta-se, pois, no argumento de que humanidade se torna tanto mais perniciosa e infernal precisamente quando procura fixar suas ideias religiosas, econômicas, étnicas, de gênero e culturais num lugar específico, igualmente religioso, econômico, étnico, de gênero, cultural, pois, assim fazendo, produz inevitavelmente lugares hierárquicos do tipo superior, inferior; avançado, atrasado; produtivo, improdutivo; civilizado, bárbaro, democrático, autocrático; feio, bonito e um sem fim de outras deploráveis ideias fixas.

Começo dos pesadelos

A humanidade, portanto, é uma única humanidade, sempre inacabada e por se fazer, em constante arranjo e rearranjo de si mesma. Sua tragédia, como espécie, é, pois, o lugar, a casa, o território, a fixação de identidades étnicas, de gênero, de classes, epistemológicas, o sistema de parentesco. É em nome de lugares, inclusive os religiosos, que a aventura humana tem sido esse delírio racista, belicista, eugênico, hierárquico. Dizer, sob esse ponto de vista, que as ideias são sempre fora de lugar não significa, por sua vez, que elas não tenham lugares, mas simplesmente que elas são, ainda que precariamente, propriedades comuns, de todos e de ninguém. A petulância de Machado de Assis, responsável por sua ficção sem lugar sobre ideias sem lugar, tornou-o um legítimo representante das melhores produções ficcionais, igualmente sem lugares, da Europa.

Evidentemente, embora não pareça, tal ponto de vista não constitui uma leitura antimarxista, por supostamente desconsiderar as relações efetivas de produção, base ou o lugar de todos os demais lugares: culturais, ideológicos, estéticos, filosóficos, jurídicos. Mas que a negação dessa perspectiva, cara aos marxistas, defendo, também inspirado no pensamento estético de Machado de Assis, a sua radicalização nos seguintes termos: tudo é infraestrutura porque tudo é superestrutura, assim como tudo é superestrutura porque tudo é infraestrutura. Tudo, as produções humanas, é um aglomerado comum, fora de mecânicas relações de causalidades; uma profusão de sem lugares que pululam de todos os lugares, em ininterrupta interação cosmológica.

Fundamentalmente, por isso mesmo, para o bem ou para o mal, o destino de uma ideia é não ter lugar, mesmo que acreditemos piamente na filiação geográfica, cultural, étnica, de gênero, econômica de tal ou qual ideia, crença que engorda e sedimenta as mais diversas formas de violência, constituindo-se como o combustível de todas as guerras, razão por que o principal inimigo da humanidade é o lugar, no sentido restrito e lato; e principalmente o lugar da humanidade dentro dela mesma, seu lugar antropocêntrico, começo de todos os pesadelos.

Mortes banais

Imbuído dessa perspectiva, proponho uma análise da versão dos oligopólios midiáticos sobre a tragédia que resultou na morte de mais de duas centenas de jovens na boate que se incendiou em Santa Maria, interior de Rio Grande do Sul. Como sempre, a versão geral e irrestrita dos meios de comunicação é precisamente a que se funda tendo em vista a crença absoluta em alguns lugares: o lugar da juventude, a maioria branca e ascendente, inclusive sob o ponto de vista escolar, pois a maior parte dos jovens cursava uma universidade pública; o lugar da mais-valia, o lugar do espetáculo, do show.

O primeiro lugar da versão do oligopólio midiático se inscreve na crença hierárquica de que a morte humana é mais trágica e, portanto sofrível, narrável, pessoal, se for de jovens predominantemente brancos e, diz-se, plenos de futuro, por cursarem prestigiosos cursos universitários. A propósito, a presidente Dilma Rousseff mesmo fixou alguns lugares ao dizer mais ou menos esta pérola: “Perdemos médicos, engenheiros, advogados, agrônomos”, omitindo uma infinidade de outros, como o lugar do professor, por exemplo, na suposição prévia de que é um lugar sem futuro digno.

Não ignoro e muito menos desprezo o inominável escândalo dos jovens que morreram na boate de Santa Maria: mortes estúpidas, banais, violentas, criminosas, imperdoáveis, indeléveis. Minha argumentação tem, no entanto, outro foco, sem lugar fixo para morte, porque fundado na evidência de que por todos os lados, no mundo, as pessoas (inclusive milhões, podendo chegar a bilhões de jovens, mortos de antemão porque condenados a não terem futuro) morrem de forma violenta, principalmente de guerras induzidas e com participação direta do genocida lugar por excelência do Ocidente: o imperialismo americano/europeu/sionista. Por que, tal como reagimos com a tragédia de Santa Maria, não nos escandalizamos igualmente com essa profusão sem fim de banais, violentas, estúpidas, criminosas mortes? Por que o oligopólio midiático não convoca seus famosos apresentadores e jornalistas para, de dia e de noite, discutir, chorar, denunciar todas essas mortes estúpidas, banais, violentas, criminosas, inclusive exigindo que algo seja feito para que elas nunca mais ocorram?

O beijo da morte

Por sua vez, o segundo delírio ou ideia fixa que não foi devidamente equacionado pelo oligopólio midiático diz respeito ao lugar do lucro, da mais-valia, como o assassino motivo da morte da maior parte dos jovens asfixiados pela fumaça tóxica da ganância dos donos da boate Kiss, de vez que ficou constatado que o porteiro demorou a abrir a porta de saída porque estava previamente orientado a fazê-lo, sob o despótico argumento de que o pagamento da conta deve preceder a tudo, inclusive a vida ou mesmo antes de tudo à vida. Por acaso, mais que acusar os donos da boate se gananciosos (e ponto final) se deslocarmos nosso olhar para o lugar de todos os lugares da civilização burguesa – o lucro – não constataremos que é o próprio sistema capitalista que é inaceitavelmente ganancioso? O sistema do lucro, o nosso, não mata direta e indiretamente bilhões de pessoas (sem contar os seres não humanos) pelo mundo afora, fechando-lhes insensivelmente a porta do direito à vida, posto que sempre se coloca na posição de inegociável, imperdoável, inevitável, irrefreável, razão pela qual julga-se no direito de espoliar, sequestrar, dizimar, guerrear, caluniar, desprezar, matar e matar e matar?

O terceiro lugar, por último, é certamente a ideia fixa mais onipresente no planeta como um todo: o lugar da pirotecnia midiática, com seus jogos demagógicos, espetaculares, de flashes e mais flashes, ilusionismos e mais ilusionismos, sexuais, corporais, estéticos, financeiros, usados e abusados, de sol a sol, com o objetivo de enganar, manipular, dissimular, iludir, agitar, seduzir, induzir a humanidade em seu conjunto ao confinamento incendiário de sua morte, como espécie, no Coliseu Romano em que se transformou o próprio planeta, na era da sociedade do espetáculo. Não foi esta a causa direta do incêndio? As pirotecnias que a boate utilizava (e todas usam) para seduzir, iludir, agitar, manipular a diversão de jovens? Que diferença tem esse sistema de pirotecnia sexual, musical, alcoólico (tudo em nome do lugar dos lugares, o lucro) relativamente às pirotecnias produzidas pelos aviões não tripulados, com suas assassinas prestidigitações de mísseis a matar indiscriminadamente crianças, jovens, mulheres, adultos, velhos no Afeganistão, Paquistão, Somália, Congo, Mali? São menos importantes essas mortes pirotecnadas?

A verdadeira tirania que sequestrou toda a humanidade é esta: a espetacular pirotecnia da demagogia midiática, pois ocupa a linha de frente de um sistema mundial de ilusionismo, de prestidigitação, estrategicamente articulado, em todos os quadrantes do planeta (eis o cúmulo da pirotecnia, chamamos isso de liberdade de expressão), com objetivo de nos asfixiar de ignorância, de alienação, de narcisismos, de preconceitos, de indiferenças, de maldades, enquanto, a serviço dele, do lucro, matamos e somos mortos, aos montes, aos milhões, aos bilhões.

Deus nos livre, leitor, desta ideia fixa: o poder astronômico do contorcionismo mundial das tecnologias midiáticas nas mãos de oligarcas que colocam o lugar do lucro na frente de tudo, pois, no momento em que o sistema mundial de ilusionismo do capitalismo tardio esfumaçou todo o planeta, como o momento atual, a única linha de fuga que temos está nas aberturas das portas que separam a Terra do cosmos, portas devidamente monitoradas por seguranças travestidos em satélites de última geração, a confeccionarem espetaculares imagens de uma humanidade confinada na boate planetariamente midiática chamada Kiss, com seu beijo da morte fantasiada de sorrisos molhados de Obama, lábios sérios de Merkel, boca assustada de Hollande, famosos lábios em estilo X da família Marinho, batons da Otan, austeridades de FMI, serpentinas da OMC, segredos inconfessáveis do Conselho de Segurança da ONU, do sionismo, das ditaduras do petrodólares do Golfo Pérsico, unidos língua a língua com al-Qaida, narcotraficantes, terroristas e todo tipo de fanatismo religioso.

Eis aí os meticulosos seguranças que nos fecham as portas do cosmos. Morreremos asfixiados?

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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]