Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

40 anos de informação e rebeldia

Na terça-feira, 12 de fevereiro, os jornais do mundo inteiro deram manchetes sobre a demissão, renúncia ou abdicação do Papa Bento XVI. O jornal Libération usou toda a primeira página de formato tabloide com uma única foto: o papa visto de costas, caminhando, mas de quem se percebe apenas uma batina branca a partir do joelho e os sapatos vermelhos. O título, “Papus interruptus”, remete à expressão “coito interrompido” (coitus interruptus), sempre usada em latim.

O editorial da página 2, assinado pelo PDG do jornal e diretor da redação Nicolas Demorand, foi publicado em latim, a língua em que o papa se expressou para anunciar sua próxima saída do trono de São Pedro. O texto de Demorand fora traduzido do francês por membros da Associação Latim nas Literaturas Européias. Na página 11, para os leitores que não são latinistas eméritos, a íntegra do editorial em francês.

Por 1,60 euro um leitor exigente pode ter todo dia irreverência, informação, análise e uma visão crítica dos acontecimentos do planeta, com ênfase no que se passa num certo país europeu chamado França. Sim, porque o jornal Libération é aberto ao mundo mas é profundamente francês e reflete os valores de uma certa esquerda francesa iconoclasta, socialista e libertária.

À sombra de Sartre

Libération festeja 40 anos em fevereiro, mas continua a mesma publicação rebelde e irreverente que era naquele fevereiro de 1973, quando Jean-Paul Sartre se associou a jovens maoístas para criar um jornal de esquerda. Um deles, Serge July, dirigiu o jornal até 2006, quando saiu por exigência do novo acionista majoritário. Sartre foi o diretor de Redação do jornal, juntamente com Jean-Claude Vernier, durante um ano. July assumiu logo em seguida e foi o mandachuva até sua demissão.

Lançado com um manifesto, o jornal pretendia ser totalmente atípico: sem publicidade nem acionistas capitalistas. A divisa do diário da esquerda maoísta revolucionária deveria ser: “Povo, toma a palavra e conserva-a”.

De 1973 até hoje, o jornal passou por momentos difíceis, correu sérios riscos, mas sobreviveu e tem um lugar importante no panorama da mídia francesa. Os cinéfilos, por exemplo, esperam a crítica deLibération para saber se vale ou não a pena ver um filme. Alguns críticos de Libé, como o chamam seus leitores familiarmente, se tornaram verdadeiras autoridades da análise do cinema e da imagem em geral – como Serge Daney, morto de Aids em 1992, aos 48 anos.

Obviamente, de sua fundação até hoje o jornal mudou. Mas não deixou de ser irreverente, iconoclasta, socialista, inovador. Nem abandonou o formato tabloide, mas há muito tempo se curvou à realidade: não podia sobreviver sem publicidade e sem os acionistas capitalistas. Libé tem desde 2006 um acionista majoritário cujo nome de família está associado ao grande capitalismo francês: Edouard Rothschild. Ao chegar ao jornal num momento de crise, o novo acionista capitalista respondeu a um dos antigos fundadores – que escrevera que “o dinheiro não tem ideias”, citando Sartre – dizendo que Libération precisava de ajuda intelectual, moral e financeira.

Vingança impiedosa

Na atual conjuntura econômica, enquanto vários jornais do mundo fecham as redações que produziam o formato impresso e, quando muito, mantêm uma versão online, Libération se equilibra com vendas diárias de 120 mil exemplares. O site do jornal tem 4 milhões de visitantes únicos por mês.

Nicolas Demorand dirige o jornal com total autonomia: todas as decisões editoriais cabem exclusivamente aos jornalistas. São eles os responsáveis pelos riscos da irreverência, como quando o jornal fez, no ano passado, uma capa “assassina” com a foto do miliardário Bernard Arnault, o homem mais rico da França. Ele decidira fixar residência na Bélgica para fugir das novas leis do governo socialista. O título da matéria de capa (“Casse-toi riche con”, dá o fora rico babaca) fazia um trocadilho com uma frase agressiva de Sarkozy dirigida a alguém que se recusara a lhe apertar a mão. Obviamente, o milionário não gostou. E deu o troco.

Libération perdeu no segundo semestre 700 mil euros de publicidade prevista e anulada para os últimos meses do ano por causa daquela capa. O milionário é simplesmente dono de marcas como Louis Vuitton e Dior, entre dezenas de outras, que anunciavam com regularidade no jornal.

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[Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris]