Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Alguma coisa fora da nova ordem mundial?

“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora da nova ordem mundial.” (Caetano Veloso, “Fora da Ordem”, 1989)

“Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?” Foi com essa provocativa pergunta que Sean Burges, professor da Australian National University, intitulou seu artigo [Burges, S. (2013). “Seria o Itamaraty um problema para a política externa brasileira?” Política Externa 21 (3) (dez/jan/fev, 2012-2013): 133-148] publicado em fins de 2012. A provocação assumida pelo próprio autor não passou despercebida; provocou intenso debate nos círculos acadêmicos e políticos desde então.

Em seu artigo, o professor Burges afirma que o Brasil chegou para ficar. Para entender a relevância do Itamaraty para o recém-chegado poder emergente, é necessário contextualizar esta chegada – feita não com loas e efusivas boas-vindas. O Brasil – e, num sentido mais amplo, os emergentes – ascende num sistema internacional hostil ou indiferente a seus interesses. O histórico da ascensão dos emergentes – de recente data, mas de impacto inegável – compreende três momentos, os quais nos auxiliam na localização do papel presente do Itamaraty.

Nos primeiros anos pós-Guerra Fria, os emergentes se viram imersos na transição sistêmica da unipolaridade triunfante para um esboço de multipolaridade. Adotam uma postura pragmática em face de um sistema internacional organizado à semelhança da superpotência norte-americana e aliados. Tem início uma ascensão lenta e “pacífica” dos emergentes.

Mecanismos multilaterais

Após os eventos de 11 de setembro de 2001, em face da corrosão da legitimidade do investimento multilateral dos EUA (construído nos estertores da II Guerra Mundial e consolidado durante a Guerra Fria) tem lugar a descolagem entre emergentes (denominados por Jim O’Neill Brics) e a hegemonia em crise. O desprezo dos Estados Unidos pelas instituições multilaterais no século 21, após o momento triunfal do pós-Guerra Fria, motivou a busca por alternativas, face à ineficiência dos atuais mecanismos e da sucessão de crises internacionais. Emergentes – dentre eles, os Brics – começam a se legitimar contra o pano de fundo desse desgaste por serem mais pluralistas do que os Estados Unidos.

Remonta a esse período a opção dos emergentes pelas instituições internacionais “multilaterais”. Esse novo “multilateralismo” surge como escolha estratégica dos emergentes, uma forma de acomodação de seus interesses em face de um sistema internacional no qual não ocupam uma posição de centralidade e o qual pretendem influenciar. Assim agindo, não confrontam diretamente a superpotência. Tal postura permite maximizar os ganhos dos emergentes e dissipa tensões que poderiam levar a confrontos desfavoráveis. Além disso, o investimento nas instituições capacita os emergentes a exercer poder suave, diluindo críticas de que seriam poderes regionais agressivos [MacKinnon, A. & Powell, B. (2008). China Calling: A Foot in the Global Door. Basingstoke, Palgrave-Macmillan, p.206].

Após a crise de 2008, os emergentes têm ganhos reais de poder vis-à-vis o hegêmona e outros grandes poderes em declínio. O vácuo de legitimidade pós-11 de setembro coloca o problema da institucionalização dos emergentes numa indefinida nova ordem global. Na busca por busca por legitimação e aquiescência de outros países frente às suas políticas externas [Li, M. (2009). Soft Power – China’s Emerging Strategy in International Politics. New York, Lexington, p.72], os emergentes pleiteiam a transformação sistêmica pela via institucional enfatizando mecanismos “multilaterais” – diplomacia pública em foros internacionais legitimados. Os emergentes participam de mecanismos multilaterais buscando redistribuir fatores de poder no sistema internacional, demandando maiores responsabilidades e papéis de destaque nos processos políticos em nível sistêmico [Stuenkel, O. (2010). “The Case for Stronger Brazil-India Relations”. Indian Foreign Affairs Journal, vol.5, nº 3, p.300].

Mudanças e demandas sistêmicas

As instituições “multilaterais” sofrem os efeitos de transformações sistêmicas mais amplas, do declínio do unilateralismo pós-Guerra Fria [Wade, R.H. (2011). “Emerging World Order – From Multipolarity to Multilateralism in the G20, the World Bank and IMF”. Politics and Society 39. p. 348]. Construídas por poderes em declínio, as instituições existentes se mostram ineficazes diante de uma grave crise sistêmica. A reforma das instituições formais mais importantes no atual sistema é priorizada. Demandas dos emergentes são efeito direto da redistribuição da riqueza global advinda da globalização e ampliada com as crises financeiras. Os emergentes enfatizam a necessidade de que mecanismos decisórios internacionais sejam “progressistas”, “acolhedores”, “eficientes” [Chari, C. (2010). Superpower Rivalry and Conflict – The Long Shadow of the twenty-first century. London, Routledge., p.46]. Instituições internacionais devem ser remodeladas segundo linhas de representatividade e operacionalidade.

Além de reforçar instituições formais, ou tornar instituições informais mais robustas, a ascensão dos emergentes envolve investimento externo; se tornam, paulatinamente, os maiores compradores e parceiros comerciais dos seus respectivos entornos regionais. Adicionalmente, ajuda ao desenvolvimento, cooperação técnica e auxílio humanitário operam como vetores “multilaterais” de incremento da influência dos emergentes no âmbito de iniciativas Sul-Sul.

A complexidade das mudanças no sistema internacional pós-Guerra Fria parcialmente reforça a tese de Burges – a de que há custos implicados na centralidade do Itamaraty para a política externa brasileira. Como burocracia reflexiva, o Itamaraty possui relativa impermeabilidade a mudanças bruscas e demanda um horizonte de tempo não-desprezível para agir – existe um delay entre a percepção do Itamaraty e as contingências do sistema. Burges ressalta o que considera ser um rendimento sub-ótimo do Itamaraty: dificuldade em perceber oportunidades de mudança bem como em responder a demandas sistêmicas.

Quadratura institucional

A resposta de Burges para esse delay (não apenas no recente artigo, mas em suas publicações ao longo do século) aventa duas alternativas. Primeiro, a pluralização da formulação de política externa para além dos confins do Itamaraty (engajando agentes políticos domésticos, inclusive de cunho privado). Em seguida – e alimentando-se da primeira alternativa – Burges salienta o papel dos presidentes. Estes não apenas são decisores legitimados domesticamente e capazes de tornar possíveis guinadas adequadas a contextos de mudanças complexas. A capilaridade política da figura presidencial viabiliza articulações flexíveis com agentes privados, evadindo-se das amarras temporais das burocracias. A diplomacia presidencial seria o equivalente funcional contemporâneo do dinamismo e inovação da gestão diplomática do Barão do Rio Branco no último quartel do século 19.

A defesa reiterada da necessidade de rápida ação e resposta é questão de relevo; nada indica que deixará de ser no futuro próximo. A ampliação da esfera de formulação de políticas públicas, idem. Não obstante, Burges é menos enfático quanto a um dos aspectos marcantes da ação sistêmica dos emergentes no presente: o investimento em instituições internacionais. O investimento sustentado no tempo em foros públicos internacionais demanda não apenas o dinamismo e flexibilidade da liderança política – no caso brasileiro, a diplomacia presidencial, cujo arco se reforça ao longo das gestões Cardoso, Lula e Rousseff. A diplomacia presidencial pressupõe a capacidade contínua de mobilizar a expertise de um vasto corpo diplomático coeso e especializado – características que o Itamaraty preenche com folga. É esse elemento que se perde na análise de Burges ao reivindicar a redução de seu papel.

O desafio que se afigura para a política externa brasileira é comparável à lenta inserção o sistema internacional eivado de potências imperiais pré-guerras mundiais (sob a sombra do gigante norte-americano). A longa e frutuosa gestão do Barão do Rio Branco tornou-se, com justiça, padrão de excelência de nossa diplomacia, mas os contextos mudam no passo do tempo.

A turbulenta acomodação dos emergentes num sistema internacional hostil e em crise, longe de prescindir da expertise do Itamaraty, reclama a ampliação de seus quadros e recursos, em consonância com e provendo sustentação adequada à diplomacia presidencial (nos marcos desse último quesito, é importante rediscutir o papel do Itamaraty). Tal não implica repelir, constranger outros agentes para fora da formulação da política externa, públicos ou privados – antes, ressalta a importância de sua integração na nova quadratura institucional do Brasil.

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[Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacionais da PUC-Rio, pesquisador do CNPq e autor de Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty (2012), Lambert Publishing (com Jana Tabak Chor)]