Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A derrocada do monopólio da televisão

Tenho agora bem claro que, dentre todas as lições que os atuais protestos de rua nos têm trazido, a principal, a que deve ficar para a história, é o marco inicial da ruína do monopólio da comunicação no Brasil, em especial das redes de televisão. Mesmo correndo o risco de afirmá-lo a partir de um ponto de vista muito comprometido, é o relato da vivência de dois momentos históricos afastados pelas décadas que me permite propor essa precipitada análise.

Porque foi inevitável que minha caminhada pela Avenida Paulista em uma noite dessas, acompanhando a multidão de manifestantes bem mais jovens que eu, me reativasse na memória o dia que passei naquela mesma avenida, vinte anos antes, gritando pelo impeachment de Collor. Os “caras-pintadas” daquela tarde tínhamos, bem ao contrário de hoje, um objeto muito formatado, um pedido específico de nosso clamor: que o presidente da República renunciasse, ou que o Congresso dele viesse a declarar o impedimento político. Mas o que estava na base daquela mobilização, que nós pouco percebíamos, era bem diverso de o que hoje impulsiona nossos estudantes.

Os jornais noticiavam o escândalo de PC Farias e um outro PC, Pedro Collor, mas eu pouco compreendia daquele contexto. Não por falta pura de consciência política, mas porque o tempo não me permitia: eu frequentava – ou deveria frequentar – pela manhã um colégio do estado, e de tarde aproveitava uma bolsa de estudos em um cursinho pré-vestibular. Era para mim impossível usufruir da minissérie Anos Dourados, cujo protagonista, creio que muito intencionalmente, usava da função empática da ficção para inflar em colegas de escola pública o desejo de enfrentar, como herói dos anos de chumbo, a cavalaria da polícia de choque. Então eu cheguei à escola pela manhã apenas porque provavelmente havia algum evento relevante e me disseram que não haveria aula, o que já não era raro, mas o motivo era desta vez diferenciado. É que hoje tem passeata!, disse o próprio policial gordinho que, a bem da verdade, funcionava ali mais como bedel.

Aplausos do JN

Entrei pelos corredores da escola e tudo que havia era um grupo de amigos que às 10 da manhã já promovia a recolha de dinheiro para comprar conhaque barato ou outros semialucinógenos que nos fizeram mais rapidamente incorporar ao movimento da massa, e a partir daí, por motivos evidentes, os fatos se esfumam um pouco em meu relato.

Lembro que governador tinha dado ordem de liberar as catracas do metrô da Paulista, que salvo engano havia acabado de inaugurar-se, para irmos todos protestar na avenida. Nem diante dessa liberação absoluta da cobrança das passagens – que hoje soa irônica – suspeitamos da conveniência política da manifestação; e eu menos ainda, porque lembro de haver perguntado a meu colega se deveria gritar contra ou a favor o tal “PC”, e ele respondeu que tampouco sabia, porque havia dois PCs, aparentemente um do bem e outro do mal, Então é melhor xingar só o presidente!, definimos enquanto subíamos a avenida da escola ainda em direção à estação.

Sobre as provas da corrupção do presidente, que não deveriam ser poucas, consegui ali apurar que havia boatos fortíssimos de que Collor ou algum agregado haviam ganho um Fiat de um empreiteiro. “Onde vai parar este país!”, gritei, e acho que àquele tempo já era sim meio sarcástico. Mas tampouco tinha eu algum interesse em aprofundar-me nesses pormenores, ainda que alguma foto jornalística daquele tempo tenha captado em mim um semblante muito indignado.

A festa de rua foi interessante, e me lembro de só haver entrado em algum confronto verbal com a polícia quando um militar me deu ordem de descer da cobertura do ponto de ônibus sobre o qual eu havia trepado, a que eu contestei que não havia risco de que me machucasse. Passei a tarde na avenida, e só por falta de condições mentais faltei ao cursinho, onde – eu soube no dia seguinte – as aulas não se interromperam mas a audiência fora quase nula. E nosso movimento foi naquela noite ovacionado pelo Jornal Nacional, ausente qualquer voz, ao que me recorde, que se voltasse contra a baderna das ruas, ou que anunciasse a iminência de estado de sítio.

Fim tardio

Pisando a avenida, vinte anos depois, não foi difícil pensar que só na aparência esses jovens se aproximam aos de meu tempo. Porque os primeiros gritos que ouvi, no novo movimento, foram contrários à cobertura da imprensa; e os celulares ativos, que filmavam e passavam mensagens constantes, davam mostra de que o espírito coletivo era surgido e alimentado à margem da imprensa monopolizada.

A tecnologia é sim o grande diferencial do presente, mas para muito além da facilidade de encontros e agendamentos que as redes sociais propiciam: a juventude de hoje evidencia o que significa nascer desatada de uma fonte única de notícias e entretenimento, e creio que isso não escapa às grandes redes de televisão, que não já não conquistam a simpatia desse público rebelde ainda quando infiltram seus principais artistas nas redes sociais em apoio às passeatas. Para o bem ou para o mal, como os antigos PCs da era Collor, a independência comunicativa é o Zeitgeist, o espírito dos tempos dessa nova juventude inquieta.

Caso sequer uma vitória da seleção canarinho acalme o povo, se comprovará minha pequena tese de que esses movimentos marcam o fim tardio da ditadura, até então mumificada no monopólio da comunicação.

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Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da USP/FDRP; autor, dentre outros, de O ensaio como tese: estética e narrativa na composição do texto científico (Martins Fontes)