Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Na era do Big Data, livre arbítrio deve ser sagrado’

Na década de 1960, o secretário de Defesa americano Robert McNamara elegeu a quantidade de baixas inimigas como medida oficial do progresso na Guerra do Vietnã. Nada mais natural vindo dele, que desenvolveu sua obsessão por dados numéricos como aluno da Harvard Business School e prodígio da Ford. Sua devoção por cifras contagiou o país e o Pentágono, os números sendo publicados diariamente nos jornais e ditando a estratégia militar. Mas, pouco depois do fim do conflito, a verdade veio à tona: praticamente todos os generais consideravam o volume de mortes um indicador inútil, muitas vezes exagerado para atender ao entusiasmo do secretário. A fé cega nos números havia deformado a realidade da guerra.

McNamara não viveu para ver, mas sua obsessão se tornaria a regra na sociedade do Big Data, tecnologia de análise de informações em escala inédita que está tomando de assalto empresas e governos. O risco é que se transforme em uma ditadura dos dados, explica Kenneth Cukier no livro Big Data: como extrair volume, variedade, velocidade e valor da avalanche de informação cotidiana, que a Campus/Elsevier publica no Brasil no fim de julho.

Entusiastas afirmam que o Big Data é uma revolução. Já os críticos, que trata-se mais de marketing do que tecnologia. Por que seu livro defende que o primeiro grupo tem razão?

Kenneth Cukier – Quem pensa que Big Data é apenas marketing claramente não entende nada sobre as mudanças em curso e vai entender cada vez menos daqui em diante. Isso não quer dizer que não haja empresas mentindo ao anunciar que “fazem” Big Data. O Vale do Silício está cheio desse hype. Mas há, de fato, algo revolucionário acontecendo: a sociedade agora é capaz de acessar e interpretar dados de maneira antes impossível. Isso promove mudanças em quase todas áreas da vida.

Em quais delas, por exemplo?

K.C. – Vou citar apenas duas em que os resultados parecem mágicos. A primeira é a genética. Os tratamentos médicos serão modelados de acordo com a composição genética de cada indivíduo, em vez de se basear em um “homem médio”. Essa é uma mudança extraordinária. O segundo exemplo é o dos carros que dirigem sem intervenção humana. Devemos essa tecnologia não à nossa capacidade de transformar regras de trânsito em software mas, sim, porque transformamos o desafio em um problema de Big Data. O veículo coleta dados e aprende com eles: vê um semáforo, identifica que a luz é verde, não vermelha, e assim por diante. Quem sugere que isso é marketing é tolo.

Seu livro fala sobre a ameaça da ditadura dos dados por meio de exemplos como o de Robert McNamara e da Google. Por que devemos nos preocupar?

K.C. – É um problema sério que me faz temer um futuro que se pareça menos com (George) Orwell e mais com (Franz) Kafka. Ou seja, não se tratará apenas da violação da privacidade mas também do que acontece quando empresas, órgãos do governo e burocratas irracionais põem as mãos nesses dados. Isso pode ser usado como desculpa para ignorar o julgamento crítico em favor do que dizem as planilhas. Seria uma versão pós-moderna da Defesa de Nuremberg: em vez do “eu estava apenas cumprindo ordens”, burocratas estúpidos justificariam suas atitudes dizendo que “os dados me obrigaram a fazer isso!”.

Seu livro também menciona o problema da propensão associado ao Big Data. O que é isso?

K.C. – Os algoritmos poderiam ser usados para prever crimes que estamos propensos a cometer. Com isso, corremos o risco de sermos punidos antes mesmo de infringir a lei. O que a sociedade deve fazer? Não é uma pergunta fácil. Por um lado, prevenir crimes e acidentes é uma coisa boa. Se as previsões estão corretas em 95% dos casos, isso é atraente. Por outro lado, isso significa que uma em cada 20 pessoas será punida injustamente, o que é terrível. Teremos destruído a escolha moral e a ação humana. Por isso, na era do Big Data, precisamos de regras para garantir que o livre arbítrio seja sagrado.

E a violação da privacidade é realmente tão preocupante quanto falam?

K.C. – A privacidade era um problema no “small data” e será ainda maior na era do Big Data. Isso porque ele torna obsoletos os dois principais mecanismos de proteção da privacidade hoje. No campo legal, insistimos em regular a coleta de dados quando as pessoas fornecem suas informações voluntariamente. Precisamos mudar o foco, coibir o uso indevido. No campo técnico, tentamos preservar a privacidade tornando as informações anônimas, mas a capacidade que o Big Data tem de relacionar vários bancos de dados permite ainda assim identificar os registros. Precisamos desenvolver novas tecnologias para proteger a privacidade.

Na sua opinião, o escândalo da NSA nos EUA é uma espécie de pesadelo do Big Data, prova de que já estamos no futuro kafkiano que você mencionou?

K.C. – Não, mas mostra como será fácil cairmos nessa situação se não formos cuidadosos. Precisamos estabelecer um equilíbrio melhor entre os poderes das agências de espionagem e o interesse público. É óbvio que a NSA vai coletar dados da internet. No passado, fazia-se isso com telegramas e políticos. A NSA, então, apenas se adaptou ao novo ecossistema da informação. O problema é que as proteções legais para prevenir abusos são do século passado. É como aplicar regras a duelos de espada em tempos de metralhadora. Precisamos modernizar a regulação sobre a vigilância de forma que haja penalidades efetivas contra abusos.

Henry Ford dizia que, se fossem consultados, os consumidores pediriam um cavalo mais rápido, não um carro. Mas o Big Data é hoje usado para prever as preferências, como fez a Netlflix com a série “House of Cards”. Você acha que o Big Data pode proporcionar produtos melhores?

K.C. – Eu acho, mas há uma grande diferença entre otimização e inovação. Podemos usar dados para fazer melhor o que já fazemos. Mas não funciona assim com a inovação, que é a criação de produtos totalmente novos. Eu acredito que, na maioria dos casos, é importante ignorar os dados e recorrer ao julgamento humano. Sim, vamos falhar várias vezes, mas essa é a natureza da inovação.

O Big Data vai substituir o método científico tradicional? Em vez de hipóteses e amostras, olharemos primeiro para padrões encontrados em bancos de dados?

K.C. – Não, mas eu acho que o método científico terá que se adaptar ao Big Data. Ele já fez isso com outras inovações no passado. As ciências só aderiram de vez à matemática nos últimos cem anos, e a estatística só existe há cerca de 150 anos. Ambas são tidas como parte integrante do método científico mas são, na verdade, incrementos. Da mesma forma, a aceitação de novas correlações que surgem somente após o processamento dos dados será vista como intrínseca à ciência, embora seja tachada de imprópria hoje.

E o que dizer sobre a macroeconomia, que analisa o comportamento agregado da economia? Ainda precisaremos de uma pesquisa mensal de inflação quando o Big Data puder nos dizer em tempo real a evolução do preço de cada item, em cada loja?

K.C. – A economia vai mudar radicalmente, tornar-se mais prática e empírica. Mas vamos conviver com os dois modelos. É muito útil, por exemplo, ter uma unidade básica de tempo para fazermos comparações. Dito isso, devemos ser capazes de compilar dados quase em tempo real, mesmo se preferirmos analisá-los em um intervalo mensal. Mas, daqui a alguns anos, a ideia de não termos dados econômicos em tempo real será vista como muito antiquada, como se alguém preferisse livros em tabuletas de argila em vez de em papel ou em formato digital.

No fim, o Big Data é algo positivo ou negativo para a sociedade?

K.C. – É os dois. É como a internet, a eletricidade ou mesmo a bússola. É mais positivo que negativo, mas será os dois.

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Rennan Setti, do Globo