Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A curiosa história do corte que foi cortado

Foi uma sexta-feira de trabalho duro e politicamente complicado, em Brasília, para o grupo encarregado de propor o corte orçamentário anunciado há cerca de um mês pelo governo. Em vez de ir à reunião do G-20 em Moscou, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, havia ficado em Brasília para trabalhar na revisão bimestral do orçamento, nas novas projeções para o ano e na proposta de redução de gastos.

O material deveria ser encaminhado ao Congresso na segunda-feira (22/7). No sábado, dia 20, a Folha de S.Paulo noticiou uma decisão: uma junta formada por pessoal da Fazenda, do Planejamento e da Casa Civil havia definido, segundo a reportagem, um corte de R$ 10 bilhões. O Estado de S.Paulo indicou um impasse e anunciou uma nova reunião para o domingo, com participação da presidente Dilma Rousseff, para a solução final. Na reunião de sexta, informou o jornal, um grupo havia defendido uma redução próxima de R$ 12 bilhões, enquanto outro batalhava por um valor na altura de R$ 5 bilhões.

Na edição de sexta-feira (19), o Valor havia apresentado um quadro geral. Diante da baixa arrecadação de junho e de um resultado provavelmente ruim em julho, o governo poderia reduzir a meta de superávit primário, o dinheiro poupado em cada ano para o serviço da dívida pública. Baixando a meta, o governo poderia apresentar uma redução menos drástica da despesa prevista para o ano. Nessa altura, técnicos do governo discutiam até se ainda faria sentido qualquer tesourada no programa de gastos.

De algum modo todos os grandes jornais vinham acompanhando o debate em Brasília sobre a revisão do orçamento. Ao longo de semanas, as projeções de corte indicadas por fontes de Brasília foram diminuindo. Começaram em cerca de R$ 20 bilhões, caíram para R$ 15 bilhões e o próprio ministro da Fazenda acabou admitindo, publicamente, a hipótese de um número ainda menor.

A decisão noticiada pela Folha de S.Paulo na edição de sábado (20) teve motivações técnicas e políticas, segundo a reportagem. Um corte inferior a R$ 10 bilhões, teriam ponderado os técnicos envolvidos no assunto, seria ruim para a credibilidade da política econômica. De toda forma, o jornal apresentou a notícia com uma ressalva: a solução ainda estava sujeita a mudanças e um número diferente poderia ser apresentado ao Congresso na segunda-feira.

Empenho da imprensa

A preocupação com a credibilidade era compreensível. Uma das respostas da presidente Dilma Rousseff às manifestações de rua e à nova onda de críticas havia sido a ideia de um pacto de responsabilidade fiscal entre a União e os estados. O exemplo, naturalmente, deveria caber ao governo federal. Mas a imagem da política fiscal já estava manchada e continuaria exposta a críticas nas semanas seguintes. O ajuste das contas federais, já se sabia, seria amenizado pela redução da meta fiscal e pela incorporação de receitas extraordinárias, como dividendos pagos com antecipação por estatais e R$ 15 bilhões de bônus no leilão do pré-sal previsto para outubro.

Além disso, a imprensa vinha escrutinando com muito cuidado a execução dos programas oficiais. A proclamada intenção do governo de preservar os investimentos –tanto da administração direta quanto da indireta – e controlar as despesas de custeio nem sempre era confirmada mesmo por dados oficiais. “A um ano da Copa do Mundo, cai o investimento em infraestrutura”, havia noticiado o Estado de S. Paulo no domingo (14/7). No mesmo dia, matéria do Globo mostrou a crescente importância dos dividendos para o fechamento das contas federais. Na segunda (15/7), o Estadão retomou o assunto, mostrando o aumento do gasto público acima da inflação, com o custeio avançando rapidamente e o investimento ainda em marcha lenta. A evolução das despesas, segundo a reportagem, dava uma ideia de como seria difícil, para o governo, um corte na faixa de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões.

De modo geral, os grandes jornais têm acompanhado de forma satisfatória as principais questões de política fiscal. O governo costuma confrontar as contas públicas brasileiras com as dos países do mundo rico, muito mais desajustadas. Tem razão quanto a esse ponto, mas os críticos têm apontado, também com bons fundamentos, a deterioração dos números e, mais grave, o uso cada vez mais amplo da chamada contabilidade criativa. Os jornalistas da área têm seguido com segurança o debate sobre o assunto. A evolução da economia brasileira dependerá amplamente, nos próximos anos, de como se resolva o problema fiscal. A rigidez do orçamento é só um dos aspectos do problema, talvez o mais visível e o de solução mais difícil em termos políticos.

Não há como negar o empenho da imprensa no tratamento do assunto, nos últimos anos. Com igual empenho o governo tem ampliado o alcance da contabilidade criativa, como se ainda fosse possível esconder ou disfarçar por muito tempo lances desse tipo.

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Rolf Kuntz é jornalista