Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Por que o Brasil não produz notícias para estrangeiros?

Passado o fôlego das grandes manifestações de junho e julho deste ano, já temos um distanciamento mínimo para tentar analisar seus aspectos com alguma frieza. E uma das facetas mais ressaltada no calor da hora, inclusive neste Observatório (ver “Imprensa internacional tenta entender movimento no Brasil“), foi a tal “perplexidade” com que classe política, intelectuais e a própria imprensa encararam os protestos em massa – e furiosos – de um povo historicamente estereotipado como pacífico, acomodado e “cordial”.

Se a perplexidade entre os jornalistas brasileiros já foi grande, que se imagine a dos coleguinhas estrangeiros, que precisaram de muitos intérpretes da realidade nacional para dar conta de comentar, contextualizar e decodificar os fatos nas ruas. Essa tarefa poderia até ser amenizada se houvesse algum tipo de cobertura regular sobre o Brasil, ainda que relegada aos diminutos espaços da cobertura internacional e misturada aos exóticos faits-divers que os “gringos” tanto gostam de catar em nosso país. Entretanto, a mídia estrangeira não está acostumada a cobrir o Brasil.

Houve uma época em que virou até piada: a cada vez que algo do Brasil era citado no New York Times, o noticiário de horário nobre na TV daqui repercutia a menção, ainda que esta fosse numa constrangedora tripinha de colunão em página par. Além de assinar atestado de complexo colonial, tal atitude confirmava que as aparições do país na imprensa estrangeira eram raríssimas, tão excepcionais a ponto de se desdobrarem em notícia em si, para a gente.

Hoje, o Brasil aparece muito mais nas páginas de jornais e nos noticiários de TV de outros países, e com pautas além do exótico ou do trágico, graças principalmente ao salto de desenvolvimento socioeconômico dado na última década. Mas o país não é fornecedor permanente de pautas, nem possui pelo menos um único serviço jornalístico que seja referência global em informações domésticas traduzidas, consequentemente tendo uma presença midiática mundial muito inferior à de países com patamar de desenvolvimento semelhante, como a Índia, ou vizinhos, como a Venezuela – e parte disso é culpa nossa.

Imagem externa

Ao contrário de diversos países, o Brasil não tem uma fonte regular de notícias voltadas para o exterior que sirva de referência aos jornalistas estrangeiros na hora de cobrir o país. Não há, aqui, sequer um veículo de comunicação ou uma agência de notícias que publique em inglês ou espanhol, em tempo real ou pelo menos periodicidade diária, conteúdo jornalístico brasileiro com os olhos no público lá fora. Não temos uma BBC World Service (pública), nem uma CNN internacional (privada), muito menos um jornal diário impresso em inglês e circulado pelos aeroportos e principais capitais do mundo. Não temos uma agência de notícias que forneça serviço ininterrupto e sistemático em língua estrangeira para clientes espalhados pelos cantos do planeta, nem estatal nem corporativa. Pior: nem mesmo em espanhol, para atingir pelo menos o público da América Latina.

A cada vez que surge a demanda por apurar uma pauta brasileira, jornalistas do resto do mundo têm de se desdobrar para encontrar fontes aqui que falem inglês, usar Google Translator para entender nossos sites de notícias e websites institucionais em geral (quase nenhum com versão em outra língua, mesmo os oficiais) ou perguntar aos seus coleguinhas tupiniquins, com sotaque, “what the *** estar acontecendo aí”? Os poucos gatos pingados que entendem o português – incluindo alguns brasileiros salpicados por grandes redações do mundo, como as da BBC, da Deutsche Welle e do próprio New York Times – ajudam nessas horas, mas não dão conta da cobertura cotidiana. Esse trabalho poderia ser muito facilitado se tivessem uma agência daqui, ou um veículo ou portal, que pudessem usar como primeira cartada na apuração.

Considerando que apenas poucas empresas de mídia estrangeira têm correspondentes próprios aqui – grande parte dos quais é repórter fotográfico –, os veículos que tentam falar do Brasil ficam reféns das agências transnacionais (AP, AFP e Reuters, e um pouco da EFE, DPA e ANSA em menor escala) para obter informações e imagens. Na prática, graças ao constrangimento do tempo nas coberturas de hard news, acabam tendo de recorrer ao que recebem por elas.

Reparemos que não é assim na contramão: se, nas editorias de Internacional daqui, queremos tratar algo dos Estados Unidos, abrimos logo nos sites do New York Times e do Washington Post, ou dos novatos Huffington Post e Politico, ou sintonizamos na CNN, na NBC ou até na Fox News. Se a pauta é no Reino Unido, vêm à mente a BBC, o Guardian, o Times de Londres, a revista The Economist. Vale o mesmo para a França com Le Monde e France24, para a Alemanha com a DW e a Spiegel, para a Espanha com TVE e El País, ou a Itália com a RAI, o Corriere della Sera e o La Repubblica.

Para não cometer a covardia de nos comparar apenas com os países ricos, mesmo olhando para os outros países do grupo BRICS vemos exemplos de mídia for export, como os jornais St. Peterburg Times, The Moscow Times, Beijing Today, Shanghai Daily e o também chinês Global Times. Rússia e China, aliás, tratam o assunto como questão estratégica, tanto que investiram milhões de rublos e yuans para montar suas respectivas redes de televisão e jornais com edições locais: a RT e a Russia Beyond the Headlines (cuja versão brasileira, Gazeta da Rússia, circula encadernada na Folha de S.Paulo), num caso, e a CNTV e o China Daily, no outro. Obviamente, a Índia e a África do Sul têm a vantagem de ter o inglês entre suas línguas oficiais e idioma canônico para suas imprensas, mas suas agências de notícias – PTI e SAPA, respectivamente – trabalham em estreita parceria com a Reuters (ainda que assimétrica) para redistribuir suas notícias domésticas no mercado internacional.

Mesmo na América Latina, vizinhos têm exemplos de veículos para alimentar a demanda jornalística estrangeira: o Buenos Aires Herald é um título consolidado na Argentina, além de a Télam, a agência de notícias oficial, ter serviço em inglês (ver aqui). Temos exemplos ainda no Chile, com o Santiago Times, e o Honduras This Week, publicado em Tegucigalpa, e as agências Notimex (México), AVN (Venezuela) e Prensa Latina (Cuba), que publicam em seu espanhol nativo e também em inglês.

Mas o cenário não se esgota. Se ainda contarmos outros países em desenvolvimento (ou “em transição”, como diz o jargão diplomático para as repúblicas ex-socialistas), a lista se recheia de exemplos como The Nation (Tailândia), Hürriyet Daily News (Turquia), The National (Emirados Árabes), The Sofia Globe (Bulgária), The Tripoli Post (Líbia), UB Post (Mongólia), Nepali Times, Croatian Times, The Borneo Post, Bhutan Observer e The Times of Central Asia (Quirguistão).

Cada um desses países tem referências internacionais de bom jornalismo voltado para fora, com canais em inglês (ou outras línguas “globais”) ou, no mínimo, versões concisas de seus websites em idiomas estrangeiros acessíveis ao público externo. Investem nisso como forma de incentivar sua visibilidade no dia a dia do noticiário internacional, o que tem consequências no comércio, nos investimentos e no desenvolvimento: “quem não é visto não é lembrado”. Além disso, sabem, por consciência nacional ou política de Estado, que exportar notícias é uma forma de controle da própria imagem no exterior, definido em última análise uma espécie de “soberania informativa”.

Ângulos próprios

O Brasil, não. Seja por estreiteza dos nossos empresários de mídia ou por falta de prioridade em nossa política pública de comunicação, o país até hoje não tem um jornal diário em inglês ou uma agência exportadora de notícias. Nossa agência estatal, a Agência Brasil, subordinada à EBC, limita-se a publicar um clipping diário em inglês com duas ou três notícias por dia (ver aqui), enquanto nossas agências privadas (Agência Estado, Folhapress, Agência O Globo) se limitam a revender conteúdo já produzido para os jornais de seus respectivos conglomerados, tudo em português, de olho em veículos menores do interior do país, e não em potenciais clientes estrangeiros. Canais internacionais da TV Globo e da TV Record se limitam a repetir a programação nacional, mirando nos brasileiros residentes no exterior, sem conteúdo em outras línguas para estrangeiros.

Houve, sim, algumas tentativas, ainda que fracassadas. Nosso primeiro magnata das comunicações, Assis Chateaubriand, chegou a lançar uma edição em espanhol da revista O Cruzeiro, que durou pouco mas circulou pelos vizinhos da América Latina na segunda metade dos anos 1950. No início do atual milênio, o empresário Nelson Tanure também aventurou-se com a Brazil International Gazette (BIG), apenas em formato digital e distribuída por e-mail (sem website próprio). Desde 2009, a colônia de estrangeiros anglófonos no Rio de Janeiro publica The Rio Times, antigo The Gringo Times, com uma edição online permanente e uma impressa mensal, mas voltada para os expatriados residentes aqui – ou seja, com mais informação local e menos contextualização para leitores que estejam fora da realidade brasileira.

A própria EBC chegou a ter o Canal Integración de 2004 a 2010, com uma hora semanal de programação em espanhol soterrada pelo resto em português. Há menos de um mês, apenas, a empresa anunciou que faria parte de um portal jornalístico conjunto alimentado pelas agências estatais da região, a ULAN (ver aqui).

Assim, a maior inserção internacional do Brasil, tanto na economia global quanto no cenário diplomático, contrasta com uma ausência aberrante na paisagem midiática. Fazemos parte dos BRICS mas perdemos para eles em investimento em comunicação internacional e autoimagem midiática para o mundo. Perpetuamos uma condição de dependência no fluxo internacional de notícias, ficando atrás de países com PIB e relevância geopolítica muito menor – tipo o Quirguistão –, mas que acordaram para a importância estratégica de ter uma mídia de exportação. Sem ela, o Brasil fica sem voz própria no exterior.

Com isso, perdemos a chance de alimentar a imprensa internacional com nossas próprias notícias – escritas, interpretadas, explicadas e contextualizadas por nós mesmos –, abrindo mão da soberania informativa.

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Pedro Aguiar é jornalista e professor