Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Atrás da lente

Estive com Eduardo Coutinho pouquíssimas vezes. Lembro de um longínquo Festival de Brasília, de um igualmente distante debate no antigo Espaço Unibanco de Cinema, e mais uma ou duas vezes em que o acaso nos reuniu por alguns momentos. Isso não me tira o direito de falar sobre ele, mas é bom esclarecer que o faço de uma posição pouco privilegiada. Nada sei do que acontecia com ele, nada sei sobre sua vida pessoal. Os fatos dramáticos que cercaram sua morte, no entanto, me atingiram profundamente, como atingiram tantos de nós ligados ao cinema.

Vou, desde o início, dar por esgotados todos os comentários sobre sua obra magistral e sua posição de artista refinado, original e elegante. Era, na minha opinião, o melhor de todos nós; um daqueles raros fenômenos que o Brasil produz de vez em quando. Quanto ao que era enquanto homem, enquanto ser humano, vou continuar não sabendo, talvez entrevendo pistas que, uma aqui, outra ali, esboçam um personagem de grandes dimensões, de dimensões tão amplas, ou mais amplas, que qualquer de seus personagens.

Terá Coutinho sido, ele mesmo, seu mais sublime personagem, seu personagem mais rico, mais enigmático e grandioso? Algumas coisas me sugerem que sim. Por exemplo: num país dominado pela exacerbação da notícia, que parece não se deter diante de nada, quando uma pessoa é morta por um raio diante de uma câmera e a cena assombrosa é exibida na televisão sem qualquer problema, sem qualquer hesitação, a atitude da imprensa no episódio de sua morte é no mínimo notável. A discrição da imprensa, o cuidado e mesmo a delicadeza no trato de um assunto tão apropriado para gerar impacto e sensacionalismo mostra de uma maneira oblíqua, mas eficiente, as dimensões do personagem.

Coutinho impôs sobre o tratamento dado a sua morte uma conduta especial como se a estivesse dirigindo de além-túmulo. Nenhum aspecto foi excessivamente explorado, nenhuma foto ou filmagem grotesca ou escandalosa foi feita, ninguém ultrapassou as fronteiras do conveniente, ninguém invadiu microfone em punho. Não houve nenhuma cena sensacional, nem desespero, nem choradeira. Tudo foi tratado dentro da dignidade que ele impunha na condução de seus filmes. É como se o homem que realizava aquelas entrevistas de uma delicadeza extrema, de uma sutileza quase mediúnica, merecesse tratamento igualmente diferente.

Gente fechada

É possível que tenha sido protegido pelos íntimos que ali estavam a postos para não permitir excessos. Pode ser. Mas nada detém a imprensa, como sabemos todos. E estou convencido de que algo da personalidade desse homem notável foi se consolidando através dos anos fazendo com que adquirisse forma um personagem poderoso, especial e único. A imprensa, os artistas, quem quer que estivesse ligado a cinema ou televisão no Brasil tinha se familiarizado com sua presença física sempre igual, seus gestos nunca excessivos, seu indefectível cigarro, as frases curtas emitidas por uma voz temperada pelo tabaco, suas roupas que pareciam sempre as mesmas e o atiravam para épocas recuadas onde se fazia um outro cinema.

É possível vê-lo em seus filmes, não em cena, a não ser raramente, muitas vezes só através da voz, de uma pergunta estratégica dirigida a um entrevistado ou a uma observação arguta feita a um outro. Mas, mesmo quando não há nem voz nem imagem, sente-se sua presença pelo olhar do entrevistado, numa correspondência nunca vista entre diretor e dirigido e que frequentemente sugere a pergunta: afinal, quem é o diretor e quem é o dirigido?

É nesse sentido, nessa sublime intersecção de papéis que, como disse acima, Coutinho talvez seja o maior personagem de seus filmes. É a força desse personagem que colocou limites e padrões para a imprensa tratar de sua tragédia. Ele comandou o espetáculo, exatamente para, como fazia em seus filmes, eliminar qualquer espetáculo e deixar apenas a vida. O resto, seu cotidiano e seu drama, ficam no âmbito das conjecturas, das perguntas não respondidas, talvez sequer formuladas. Me arriscaria a dizer que esse homem discreto, distante e fechado preferia o silêncio às confidências. Me arriscaria a dizer que esse homem de uma geração antiga, pouco distante da minha, aliás, o que me dá certa autoridade nas suposições, era pouco afeito a divulgar o que se passava com ele.

O que acontece em família deve ser tratado em família. Não para esconder um segredo por vergonha, mas por pudor, por delicadeza, para não incomodar os outros. Talvez partisse da constatação de que não há famílias exatamente felizes e, portanto, descarregar sobre outro suas desgraças é, ao mesmo tempo, ignorar que esse outro também tenha os próprios problemas e não é justo que se ocupe de mais um. As famílias infelizes são infelizes cada uma à própria maneira, como dizia o famoso romance, o que vale dizer que só quem vive o problema pode senti-lo.

Essa reserva extrema não carrega uma verdade em si. Há quem prefira divulgar seus problemas, também com dignidade, também com grandeza. Mas eu, no que me diz respeito, me aproximo mais do silencioso, só isso. Talvez por essa razão recrio esse Coutinho de quem me sinto muito próximo. Como eu, ele era filho desta cidade de São Paulo, ela mesma, pelo menos na geração dele e também na minha, constituída por gente fechada, educadamente discreta, que sabia instintivamente que a compreensão é impossível e a piedade mal vinda. Apesar de ter dedicado ao Rio de Janeiro o melhor de sua criatividade e de seu talento, acho que Coutinho carregou consigo, ao longo da vida, um pouco de sua velha cidade.

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Ugo Giorgetti é cineasta e colunista do Estado de S.Paulo; dirigiu, entre outros filmes, Boleiros – Era uma vez o futebol… (1988)