Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O ator que fez da infelicidade uma alegria de se ver

Ficou claro, ao menos desde que ele ganhou o Oscar por Capote, em 2006, que Philip Seymour Hoffman era um ator extraordinariamente bom. Na verdade, ficou claro bem antes disso, dependendo de quando e onde você tenha começado a prestar atenção.

Talvez tenha sido quando ele e John C. Reilly incendiaram o palco no teatro “Circle in the Square”, na reapresentação de 2000 de O verdadeiro Oeste, de Sam Shepard. Ou, talvez, a notícia de sua especial combinação de talento, disciplina e coragem tenha sido trazida ainda antes – na arrebatadora cena ao telefone em Magnólia, as perturbadoras cenas ao telefone em Felicidade, a triste autoaversão em Boogie nights – Prazer sem limites ou o presunçoso autocontrole em O talentoso Ripley.

Evidência adicional não é difícil de encontrar. Hoffman trabalhou um bocado ao longo dos últimos, digamos, 15 anos – em filmes independentes ambiciosos, em grandes sucessos de Hollywood e em produções teatrais dentro e fora da Broadway – e quase sempre fez algo memorável. (Por exemplo, se você se lembra de alguma coisa da comédia romântica Quero ficar com Polly, de 2004, é provável que seja a falta de destreza no basquete de Hoffman e os dúbios conselhos românticos que ele dá a Ben Stiller.)

Seus papéis dramáticos em filmes de médio porte (Capote, A última noite, Dúvida, Antes que o diabo saiba que você está morto, A família Savage e Sinédoque, Nova York, para manter a lista, por ora, em uma meia dúzia de exemplos) se distinguiam por quão longe ele estava disposto a penetrar na alma de personagens imperfeitos ou até mesmo detestáveis. Como o amigo estranho e severo ou o volátil colega de trabalho em um grande filme comercial, ele poderia oferecer não apenas o alívio cômico, mas também o prazer específico que surge do encontro com um ator que leva a sério a sua arte, a despeito do projeto. Ele pode ter se especializado na infelicidade, mas você sempre ficava alegre ao vê-lo.

Fermento cultural

Os dotes de Hoffman foram amplamente celebrados enquanto ele estava vivo. O choque de sua morte no domingo, no entanto, revelou, muito cedo e muito tarde, a escala surpreendente de sua grandeza e a solidez de suas realizações. Nós não perdemos apenas um ator muito bom. Nós podemos ter perdido o melhor que nós tivemos. Ele tinha apenas 46 anos e a sua morte, aparentemente de uma overdose de drogas, interrompeu uma carreira que já era monumental.

Nós ficaremos privados do seu Lear, o seu Próspero, o seu James Tyrone em outra Longa jornada noite adentro. (Ele foi o filho Jamie em uma produção dessa peça, em 2003.) Nos últimos anos, porém, ele já havia começado a migrar dos adultos problemáticos para os patriarcas trágicos. O seu Willy Loman, na remontagem da Broadway de 2012 de A morte de um caixeiro viajante, de Arthur Miller, foi uma grandiosa e operística descriçãoda vaidade, da autoilusão e de necessidades emocionais brutas, transmitidas com força e delicadeza suficientes para passar a mensagem da peça, evitando o seu sentimentalismo.

O que ele fez em O mestre, seu quinto filme com o diretor e escritor Paul Thomas Anderson, foi ainda mais grandioso. Pode ser que o mundo demore um pouco a alcançar essa jornada nas zonas escuras e inexploradas do personagem estadunidense, mas, ao alcançar, se descobrirá, em Lancaster Dodd, um arquétipo do idealismo corrompido, do zelo empreendedor e do autêntico discernimento espiritual.

Mas também, como o personagem gosta de dizer de si mesmo, com uma modéstia ostensiva: apenas um homem. Dodd é carne e sangue, apetite e imaginação, uma criatura que expressa precisamente o seu lugar e a sua época. A dicção de Philip Hoffman, seu físico roliço, suas expressões de jovialidade rotariana e seu intelectualismo cuidadoso estabeleceram Dodd como um modelo exemplar (ainda que excêntrico) do estadunidense do pós-guerra, uma expressão do mesmo fermento cultural singular que produziu Willy Loman.

O mestre, claro, está atrás de algo mais do que a história repensada. Ele quer penetrar, como o próprio Dodd, nos mistérios perenes da personalidade humana, um espécime de cada vez. Dodd é um curandeiro, um vigarista e um autoproclamado profeta. Ele é também, talvez acima de tudo, um ator: um performático, um cantor de improviso e um comediante de stand-up – um homem com um Método. Ele o chama de Causa, mas a sua técnica de exploração psicológica, baseada na escavação da memória e na abertura de territórios emocionais confinados, mostra afinidades óbvias com o processo que a maioria dos atores de teatro e cinema usa para encontrar seu caminho em um personagem.

O caminho de Hoffman – não necessariamente afiliado a qualquer escola em particular ou ideologia e, acima de tudo, o produto de sua própria inteligência inquieta e seu ímpeto inflexível – levou-o mais longe e mais fundo do que a maioria dos seus colegas estaria disposta a arriscar.

Lancaster Dodd poderia ter sido um tipo familiar: um encantador e escorregadio charlatão. Philip Hoffman fez dele mais do que isso. Uma de suas primeiras cenas é uma entrevista – parte terapia, parte interrogatório – com Freddie Quell, um veterano perturbado interpretado por Joaquin Phoenix. O inconfundível barulho da voz de Hoffman transmite tanto sadismo como compaixão: impulsos simultâneos de Dodd para ajudar, seduzir e dominar o seu novo protegido. Mais tarde, quando Dodd faz um brinde no banquete do casamento de sua filha, nós vemos tanto a sua arrogância como a sua insegurança e capturamos um bruxuleio da solidão que alimenta a sua insaciável e destrutiva fome de amor.

Dodd ao mesmo tempo provoca o nosso julgamento – ele faz coisas terríveis em nome de fins questionáveis –, mesmo quando Hoffman arranca a nossa admiração. Sua meta não parecia ser apenas a verdade psicológica que tem sido há muito tempo o critério básico do agir pós-Método, mas uma incerteza moral que permanece demasiado preocupante e assustadora para muitos de nós, na arte ou na vida, nos envolvermos.

Iluminando a feiura humana

Isso não é apenas uma questão de procurar áreas cinzentas ou mapear ambiguidades. Os personagens de Hoffman vivem com frequência em um estado de tormento ético e existencial. Eles estão presos ao campo de batalha onde o orgulho e a consciência lutam contra instintos básicos e feios.

Lancaster Dodd sacrifica a sua inteligência no altar de seu ego. Truman Capote arrisca a sua integridade e trai os seus amigos na busca de suas ambições literárias, motivado por uma mistura volátil de compaixão e curiosidade mórbida. O professor em A última noite e o predador solitário em Felicidade são ambos indelevelmente assustadores. O acadêmico frustrado de A família Savage é meramente (ainda que também esplendidamente) misantropo e o rabugento artista de teatro de Sinédoque, Nova York pode ser meramente (ainda que também barrocamente) frustrado. O padre de Dúvida e o suposto criminoso de Antes que o diabo saiba que você está morto são potencialmente muito piores.

Esses não são anti-heróis na televisão a cabo, no sentido do termo de meninos maus carismáticos. Eles são, em muitos casos (e há mais, percorrendo todo o caminho de volta até O talentoso Ripley e mesmo até Perfume de mulher, de 1992), pessoas completamente horríveis: patéticos, repulsivos, indignos de simpatia. Philip Hoffman os resgatou do desprezo precisamente por recusar qualquer caminho fácil até a redenção.

Ele não se importava se nós gostávamos de qualquer um desses espécimes tristes. O ponto era nos fazer acreditar neles e reconhecer neles – e nele – uma verdade a respeito de nós mesmos, a qual, de outro modo, nós preferiríamos evitar. Ele tinha uma rara capacidade de iluminar as variedades da feiura humana. Ninguém nunca fez isso tão lindamente.

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A. O. Scott é jornalista e crítico de cinema