Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Snowden está de mãos atadas e pode ficar assim por anos’

Tudo o que cerca Edward Snowden é motivo de polêmica – até os relatos sobre a saga do ex-técnico da CIA e da Agência de Segurança Nacional dos EUA, a NSA. O jornalista britânico Luke Harding, do diário “Guardian”, foi o primeiro a contar, detalhadamente, em ritmo de thriller de cinema, como o tímido Snowden, um jovem nerd, se tornou o maior informante da década ao revelar a magnitude da espionagem cibernética americana. Recém-lançado nos Estados Unidos, seu livro “Os Arquivos Snowden” (editora LeYa) chega ao Brasil nesta semana causando bate-boca nas redes sociais. Pelo Twitter, o WikiLeaks e o representante jurídico de Snowden nos EUA, Ben Wizner, criticaram a obra. A alegação é que Harding nunca sequer encontrou o informante, mas apenas reuniu material publicado no “Guardian” para a obra de 288 páginas. Mas, em conversa com O Globo, Harding não pareceu preocupado.

O que mais o surpreendeu ao desbravar o passado de Snowden?

Luke Harding – Acho que temos uma imagem clara. Ele vem de uma tradição muito americana, muito patriótica, libertária na filosofia. Essencialmente um republicano, simpatizante de Ron Paul, que se tornou cada vez mais decepcionado com o que viu, como funcionário da CIA e da NSA, sobre o que os EUA fazem na questão de vigilância em massa sem qualquer tipo de consulta ou debate público. Acho que foi intelectualmente um choque para alguém que realmente acreditava nos EUA e na segurança nacional. A maneira como ele se tornou um whistleblower é fascinante.

Partidários do Partido Republicano costumam ser firmes em questões de segurança nacional nos EUA. O senhor consegue identificar um ponto de ruptura onde Snowden decidiu romper com essas tradições?

L.H. – Acho que foi quando Snowden trabalhou para CIA em Genebra. Ele é um gênio em termos de informação e sistemas. Ele teve acesso a documentos lá, e ainda mais documentos quando esteve no Japão. Como alguém que acredita na Constituição americana, vê-la violada, violados os princípios da democracia americana, por exemplo, da forma como os dados telefônicos de cidadãos dos EUA estavam sendo coletados em larga escala… Quando viu o programa PRISM e entendeu que as comunicações de todo mundo estavam sendo monitoradas pela NSA… O que ele disse em Hong Kong para meu colega do “Guardian” foi que ele estava esperando que o governo de Barack Obama revertesse as medidas adotadas por George W. Bush após o 11 de Setembro, e isso não aconteceu. Quando isso não ocorreu, ele decidiu vazar esse material para jornalistas responsáveis. Snowden vinha planejando isso há vários anos antes de fazer contato com Glenn Greenwald, Laura Poitras, meu colega Ewan McAskill… E eles se encontraram em Hong Kong.

Muito do perfil que o senhor traça de Snowden é baseado em supostos posts dele, anos atrás, num fórum técnico na internet. Snowden nunca confirmou estar por trás do usuário THETRUEHOOHA. Que indícios temos para acreditar que era ele, de fato?

L.H. – Bem, não quero trair meus colegas, mas… Entendo que é ele.

O senhor menciona que Snowden tinha “um anjo da guarda misterioso” em Hong Kong. Ele tinha conexões na Rússia também?

L.H. – Essa conexão dele com a Rússia é bem complicada. Falando como alguém que tem experiência na Rússia e nos serviços de segurança da Rússia, onde passei quatro anos, eu não acho que tenha havido um complô russo, que Snowden seja um traidor ou que tenha usado um serviço de inteligência estrangeira para desmascarar a NSA. Pode-se notar que ele agiu efetivamente sozinho, por motivação própria, fez o que fez por razões patrióticas e idealistas. As coisas se complicaram muito mais quando ele se viu em Moscou. Ele não tinha a intenção de ir para lá; o que ele queria era ir para a Islândia, algum país democrático na Europa ou até para a América Latina, para Equador, Colômbia ou Brasil. Acho que eram as preferências dele, mas ele se viu preso em Moscou. E ficou claro que ele era interessante para o Kremlin e sua Inteligência. A grande pergunta é se ele entregou material aos russos, e ele diz que não. Não há razão para acreditar que ele tenha feito algum tipo de acordo… Mas o presidente Vladmir Putin descreveu a presença dele como um presente de Natal indesejado.

E sobre a América Latina? Por que o interesse dele no continente? Há indícios de que Snowden tivesse conexões latinas?

L.H. – Estive no Rio em julho passado, com Glenn Greenwald. Exploramos essa questão. O Brasil é um elemento muito importante neste caso, com a presidente Dilma Rousseff tentando comandar uma reação às revelações, tentando uma reforma da arquitetura mundial da internet, tentando colocar as coisas sob controle. Acho que Glenn Greenwald, baseado no Rio, tem sido o melhor editor das histórias de Snowden e está em contato com ele.

Mas à época da busca de asilo, Snowden nunca mencionou o Brasil explicitamente…

L.H. – Ainda não está completamente claro o que se passou com ele desde Hong Kong. Eu conversei com os advogados dele lá para tentar entender; eles não me responderam sobre isso. A situação não era boa. O mundo de Snowden estava encolhendo quando ele passou por Hong Kong, uma área muito pequena. Acho que o papel do WikiLeaks foi importante naquela época, o fato de Julian Assange estar na Embaixada do Equador em Londres. Digo isso no livro: Julian vê com bons olhos o mundo que o apoia, o que inclui muitos países latino-americanos.

O senhor vê semelhanças pessoais entre Assange e Snowden?

L.H. – Eles compartilham a crença de que o aparato de segurança nacional dos EUA foi longe demais desde 2001 e está fora de controle. Mas eles não partilham da mesma filosofia sobre vazamentos. Snowden deixa muito claro quando lida com seus parceiros de imprensa que ele não quis expor nenhum tipo de informação que pudesse prejudicar a segurança nacional, mas revelar a magnitude, o impacto dessas ações de segurança sobre os americanos e o mundo. Ele não quis causar danos à agência, operações no Afeganistão ou qualquer outra coisa. Snowden nunca quis causar uma explosão na CIA, mas reformá-la. Julian tem uma filosofia mais absolutista. Ele queria revelar tudo, disponibilizar tudo. Suspeito que se ele tivesse acesso aos mesmos documentos, disponibilizaria todos online.

Nos últimos dias, gente como o próprio Glenn Greenwald e até a conta do WikiLeaks usaram o Twitter para desacreditá-lo. Eles alegam que uma pessoa que nunca esteve com Snowden não poderia escrever “Os Arquivos Snowden”. Como reage a isso?

L.H. – Acho que quando Glenn mandou este tuíte, ele não havia lido o livro! Mas desde então, ele leu e pelo que eu entendo, achou o livro bem bom. Agora ele entende que é um livro simpático a Snowden, algo que ele não tinha percebido quando escreveu o tuíte. É uma loucura, mas há aqueles que criticaram meu livro e sem sequer ler. O WikiLeaks diz que é terrível, mas depois admite ‘ah, mas não lemos ainda’. Todos nós esperamos críticas, mas você sabe… Antes de criticar, é uma ideia ler, ter uma ideia sobre Snowden, suas revelações, sobre como os parceiros de Snowden na imprensa estão sob forte uma pressão da Casa Branca… Estamos vivendo um momento extraordinário na História, quando a cortina foi aberta para revelar o Estado-nação, promovendo um enorme um debate público. É legítimo que haja críticas, mas Glenn, eu, Snowden… Estamos todos do mesmo lado.

Qual é o seu maior objetivo com o livro?

L.H. – Contar esta história para todo mundo, em todo o mundo, o que está acontecendo. E também para mostrar o papel do jornalista nesta saga. Profissionais vão para Hong Kong, encontram Snowden, analisam dados, escrevem histórias… Tudo sobre uma pressão enorme da Casa Branca e, mais especificamente, ameaças do governo britânico. Cabe aos leitores julgarem esta história.

E o senhor arriscaria prever como termina a saga Snowden?

L.H. – Ninguém sabe. Não sabemos se esse exílio vai durar meses, anos ou décadas. Meu palpite é que o atual governo americano não vai perdoá-lo. Não há qualquer sinal de apesar de clemência, apesar de Obama ter anunciado reformas na NSA. Acho que o próximo governo, seja democrata ou republicano, também não vai perdoá-lo. Ou seja, a realidade é que essa situação vai durar por um bom tempo. Assim como Assange, Snowden está de mãos atadas. E pode ficar assim por anos.

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Renata Malkes, do Globo