Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Literatura e televisão

A interface literatura e televisão no Brasil é um tema instigante. Em seus primeiros anos, a teledramaturgia se valeu dos grandes autores e obras para emplacar boas histórias e elevar a audiência. Mas será que sempre foi assim? Professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades, da USP, a professora Sandra Reimão pesquisou sobre o tema. Publicou, inclusive, a obra Livros e televisão – correlações (Ateliê Editorial), onde traça um paralelo histórico das duas áreas. “Ao longo dos anos de produção de telenovelas brasileiras, a literatura ficcional nacional e, em especial, os romances, têm, frequentemente, fornecido personagens, tramas e enredos a este formato televisivo. A história das telenovelas de origem literária integra-se à história geral do conjunto das telenovelas brasileiras”, destaca a publicação.

Em entrevista à revistapontocom, Reimão indica o que parece ser os pontos positivos e negativos desta interface, trazendo um pouco da historiografia da TV brasileira e seu quadro atual de produção. Acompanhe:

Quais são os pontos positivos e ou negativos da interface literatura e TV no Brasil?

Sandra Reimão – De maneira bastante geral podemos dizer que a presença da literatura como fonte para ficção televisiva tem como principal ponto positivo a possibilidade de estimular a leitura das obras literárias. Por outro lado, os críticos costumam apontar uma relativa simplificação da complexidade de obras literárias relevantes como ponto negativo em suas adaptações. Talvez o mais produtivo seja pensar em uma visão englobante que insira o livro no conjunto dos sistemas de comunicação social. É inegável que, a partir do século 20, os meios eletrônicos de comunicação somam-se à produção impressa como instrumentos de informação, educação e cultura. Atualmente, nessa nova configuração da ecologia comunicacional em que livros e meios eletrônicos convivem, as amplas possibilidades dos diferentes processos de tradução entre impressos e audiovisuais passam a ser constituintes dessas linguagens.

É possível demarcar ‘fases’ desta interface literatura-televisão?

S.R. – Ao surgir, em 1950, a TV brasileira, para teleteatros e telenovelas, baseou-se em radionovelas e romances da literatura internacional. Romances de autores brasileiros foram também, desde cedo, adaptados para TV. E, nestas adaptações, apareceu logo a preferência por escritores consagrados como José de Alencar e Machado de Assis, como se a telenovela buscasse extrair um pouco de legitimidade através do “peso cultural” dos autores adaptados. A partir de fins dos anos 1970, correlatamente a consolidação do papel central da TV na cultura brasileira, as telenovelas se firmam como produtos comerciais, como linguagem e como formato de prestígio na TV, consolidadas, as telenovelas não precisam mais se basear em romances e especialmente não mais precisam salientar esta origem como forma de legitimação cultural. No século 21, as adaptações literárias na televisão brasileira estão mais presente nas minisséries do que nas telenovelas.

Podemos identificar um ‘tipo de literatura brasileira’ que é mais ‘atraente’ para a TV no Brasil? É possível conhecer a literatura brasileira por meio das adaptações realizadas pelas emissoras de TV?

S.R. – Em Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino afirma que é dupla a vinculação de um clássico literário com a sociedade – um clássico é uma obra que se vincula tanto com quem a leu, admirou e incorporou em seu repertório, como quem não a conhece diretamente. Uma obra clássica deixa marcas, vestígios, em todo um determinado grupo social ou cultural. A partir dessa anotação de Calvino podemos pensar que quando a televisão adapta obras clássicas ocorre um amplo processo de entrosamento e reforços múltiplos: do cânone literário, da identidade nacional, dos leitores admiradores da obra escrita, do sistema televisivo e da própria emissora que fez a adaptação. Nesse sentido gostaria de ressaltar a minissérie de televisão Capitu baseada no romance Dom Casmurro (1899) de Machado de Assis, transmitida pela Rede Globo de Televisão em 2008 e disponível, desde 2009, em DVD da Globo Marcas, que teve toda uma estratégia de lançamento voltada para usuários da internet. Uma das ações foi a gravação de uma leitura coletiva sequencial do romance dividido em 1000 trechos: “Projeto mil casmurros – a leitura coletiva de Machado de Assis”. Ao propor um ato de leitura coletiva, a campanha, simbolicamente, sinaliza colocar a adaptação a serviço da obra literária, da cultura escrita e do leitor do texto impresso, e, ao mesmo tempo, convida esse leitor para participar do mundo do audiovisual. Essa estratégia aproxima leitor e telespectador e assinala que é possível transpor essa ponte.Além da adaptação de clássicos da literatura nacional, encontramos também na ficção televisiva brasileira adaptações de obras recentes que, muitas vezes, só conseguiram alguma divulgação através da adaptação.

Neste cenário é possível afirmar que a literatura brasileira ‘deve muito’ à televisão por se tornar mais popular e conhecida pela sociedade brasileira? E o contrário é verdadeiro – a televisão despertou o interesse da sociedade brasileira para a literatura, aumentando as vendas?

S.R. – Essa questão é complexa e multifacetada: tanto a literatura pode se beneficiar de sua divulgação pela televisão através da adaptação quanto os programas televisivos podem se beneficiar dos enredos, personagens e questões das obras literárias. Texto literário e programas televisivos são produções culturais em suportes físicos diferentes que engendram e solicitam diferentes formas de fruição, apreensão e decodificação. No entanto, apesar das diferenças, há um diálogo entre literatura e TV – no Brasil, as minisséries e as telenovelas baseadas em romances são exemplos dessa sinergia que pode ser benéfica para ambos os lados. Um adendo: Essa semana mesmo li uma notícia de que livros citados na telenovela da Globo das 21 horas estão entre os itens mais procurados pelos telespectadores da emissora.

Na avaliação da senhora, quais são os desafios que esta interface (televisão/literatura) enfrenta nos dias do entretenimento de hoje?

S.R. – Gostaria de repetir aqui a frase com a qual encerro o livro Livros e Televisão: correlações, citando: “a nosso ver, as especificidades dos meios impressos em relação aos eletrônicos não conduzem à afirmação de uma intransmissibilidade entre eles, mas, sim, apontam para os cuidados necessários nas travessias. Com essa afirmação eu busco ressaltar a dificuldade de generalizações prévias]; é preciso analisar cada caso de transmidiação, de tradução, de adaptação, entre os diferentes meios, e na especificidade, avaliar criticamente os resultados obtidos.

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Marcus Tavares é jornalista, editor da revistapontocom, doutor em Educação pela PUC-Rio, colunista do jornal O Dia, professor da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, do Colégio José Leite Lopes – NAVE e da UniverCidade