Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Se correr o bicho pega e se ficar o bicho come’

Nos últimos anos, os temas mais importantes para serem legislados no Brasil ou demoram demais na pauta do Legislativo ou de repente são votados com urgência na forma que for no estado em que se encontram mesmo que isso prejudique a qualidade da lei ou que possa ainda trazer impactos econômicos e sociais não previstos, posto que analisados de forma superficial, ou sujeitos a muita negociação política, o que acaba por onerar o custo país e até afastar investimentos estrangeiros.

É quase um absurdo observar que de um lado levam-se anos com um ou mais projetos de lei sobre um determinado tema, e por outro lado vota-se sem que sejam resolvidas questões fundamentais. Claro que não há lei perfeita; ela deve ser aperfeiçoada com tempo, mas ela deve ser adequada o suficiente para resolver a questão que motivou sua criação e clara para evitar confusões de interpretação, além, é claro, de atender ao requisito de implementabilidade, afinal, papel (físico ou digital) aceita tudo. Senão, é só mais uma lei dentre as milhares que temos e que estão longe de aumentar a segurança jurídica para as relações de pessoas e instituições no Brasil.

Foi assim que aconteceu com a Lei de Crimes Digitais que após mais de 10 anos de tramitação foi aprovada com poucos tipos penais, tipificando praticamente quatro crimes de um rol muito maior previsto inicialmente, frustrando muito quem precisa combater os atos criminosos que só crescem na internet.

A remoção de conteúdos

Então, o Marco Civil não seria diferente. Entrou na pauta de urgência como uma forma de satisfazer interesses de governo, mas não de Estado (que independem de mandato). E também como se a segurança de dados pessoais dos brasileiros já não estivesse sendo tratada em outro projeto de lei que se encontra parado e que deveria ter andado com muito mais celeridade… O pior é que a redação atual do Marco Civil tenta dar um tiro para acertar múltiplos alvos, e isso é o fator que mais pode dificultar sua aprovação e, se for aprovado, comprometer sua capacidade de eficácia.

Um dos pontos que justificaram a sua elaboração foi justamente a questão da neutralidade da rede, previsto no artigo 9º. No entanto, é por certo o item que mais incomoda alguns setores e players da economia. Muitos que monopolizam a infovia digital brasileira não têm interesse em igualar o tráfego de dados de todos, afinal, o poder de conceder preferência de passagem gera altos retornos financeiros.

Esse artigo trouxe todo o poder ao Executivo (presidente), para gerar discriminação de tráfego por decreto presidencial, novamente, atraindo possíveis interesses político-partidários de quem está no poder (que é efêmero), em vez de trazer quem detém conhecimento técnico e permanência de longo prazo, dois elementos essenciais para a própria sustentabilidade da neutralidade (como seria o caso de indicar o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI) ou alguma agência reguladora, por exemplo).

Na questão de proteção de dados, o artigo 12 é um “cheque em branco” para a intervenção do Estado na economia, contrariando toda tendência instaurada no Brasil após 1990 com a abertura do mercado e as privatizações. Mesmo que isso pudesse ser aceitável, seria viável? Como a atual infraestrutura comprometida com riscos de apagão energético, racionamento de água, carente de plano ou política de fomento da indústria nacional de tecnologia e ainda associada a grande carga tributária conseguiriam gerar um ambiente propício para trazer servidores de provedores que estão em outros países para o Brasil? Duas coisas podem ocorrer: um pior serviço, mais caro e não necessariamente mais seguro para o consumidor brasileiro ou a ausência completa dele (nem ter a oferta do estrangeiro nem o equivalente nacional).

Há sim um justo receio mundial sobre os atos da NSA e o monitoramento de dados e comunicações praticado pelos EUA. A própria Alemanha, com a Angela Merkel, juntamente com outros países, quer gerar uma internet mais segura e protegida para os europeus. Mas que chance temos de fazer isso aqui no Brasil? Até porque o Marco Civil não tem o condão de tratar sobre segurança digital e combate a cyberespionagem. Trazer isso como justificativa para sua aprovação é se aproveitar da síndrome do medo para efeitos de manobra eleitoreira.

Cabe sim à administração pública ser capaz de ofertar serviços de qualidade e segurança para uso dela própria, que sim podem ser de uso obrigatório, ou até do cidadão (nesse caso opcional), mas não impor isso para a iniciativa privada, posto que seria ilegítimo e considerado um ato de abuso autoridade ferindo recomendação da própria Organização Mundial do Comércio (OMC) por criar uma barreira não tarifária a prestação de serviço por empresa estrangeira (reserva de mercado).

A parte sobre remoção de conteúdos na forma como se encontra no atual artigo 22 é preocupante. A previsão de solução rápida e amigável (notice and take down) só ocorre se houver conteúdo de cunho erótico, de atos sexuais ou nudez sem autorização prévia dos envolvidos (expostos). Somado com os artigos 14 e 20, onde então só há o dever de remoção quando houver ordem judicial, não privilegia a liberdade de expressão responsável e ética, mas sim, os crimes contra a honra (crescentes no Brasil onde qualquer um ofende outro, denegrindo sua honra, imagem e reputação). Deixamos de seguir bons exemplos como o do Canadá que prevê o modelo notice and notice.

E como fica então o combate ao conteúdo de cyberbullying, já que o Marco Civil não fez qualquer ressalva para remoção com urgência se envolver menor de idade, atendendo ao artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente? Mas se envolver direitos autorais aí pode haver a via extrajudicial, prevista em lei própria. Isso significa que aos olhos de nosso legislador, um bem patrimonial entrou na frente da proteção de nossas próprias crianças, cada vez mais expostas no mundo digital.

Danos, dúvidas e insegurança

A consequência disso é um grande aumento da impunidade e bem como do custo (recursos e tempo) para uma vítima remover um conteúdo da web, que só poderá ocorrer pela via judicial. E a ideia de usar o Juizado Especial (JECs) vai inviabilizar o andamento de outros casos de consumidor devido ao volume que isso vai gerar. Deveria sim ser criada uma vara especializada, pois isso garantiria agilidade e padronização de decisões de casos similares. Mas quase tudo que poderia solucionar os problemas está sujeito a regulamentação futura, se houver.

Sobrou algo de bom então? Pouco. Praticamente o dever de guarda de logs (que apoiam prova de condutas e autoria) previsto no artigo 16. O restante de bom (artigos 2º, 3º, 4º 7º e 10º) são princípios já previstos na Constituição Federal de 1988, que não precisariam do Marco Civil para serem garantidos, como a tão falada liberdade de expressão, a privacidade, ou mesmo a inviolabilidade das comunicações, que inclusive também é prevista tanto no Código Penal como na lei de interceptação e por último a proteção geral frente ao compartilhamento de dados não autorizado previsto no Código de Defesa do Consumidor.

O Marco Civil é importantíssimo, mas foi desvirtuado, perdeu o foco e ficou generalista onde deveria ter sido específico para complementar leis já existentes, e específico demais em temas que não deviam ser tratados por ele, resultando em mais danos econômicos e sociais, dúvidas e insegurança do que soluções. Isso gera um grande paradoxo: depois de tanta discussão, se o Marco Civil for aprovado na redação em que se encontra, está ruim, e se não for aprovado, continua tudo como estava, que também não era bom, ou seja, “se ficar o bicho pega e se correr o bicho come”, e quem paga somos nós.

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Nota do Brasil Post

O diretor editorial do Brasil Post, Ricardo Anderáos, escreveu um artigo sobre os problemas decorrentes da aprovação do Marco Civil da Internet.

>> Marco Civil: de volta à era do chip lascado?

O repórter Cauê Marques entrevistou o relator do projeto na Câmara, deputado Alessandro Molon (PT-RJ).

>> PMDB divide Congresso e está ao lado das teles, diz Molon

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Patricia Peck Pinheiro é advogada especialista em cultura digital e inovação, autora de 14 livros sobre “Direito Digital”