Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Olha o nível

Há quem diga que é um provérbio chinês; há quem atribua a frase a Platão. Usemos a fórmula de Millôr Fernandes, um gênio em tudo que se propôs a fazer: “Confúcio disse”. E que é que disse Confúcio? “Pessoas inteligentes discutem ideias, pessoas comuns comentam fatos, pessoas mesquinhas criticam pessoas.”

E o que mais se vê hoje no material de opinião, tanto de jornalistas como do público, é o culto ao ataque pessoal. Fulana de Tal só prevê acontecimentos desagradáveis para criar um clima político-econômico ruim, Beltrano se vendeu e passou da esquerda à direita, Sicrano é coxinha. Chamar alguém de kiwi, peludo por fora e fruta por dentro, passou a ser politicamente incorreto; mas basta duvidar da lisura das eleições norte-coreanas, em que o ditador de plantão teve 100% dos votos, para se transformar em fascista, ultradireitista, seguidor da Ku Klux Klan e viúva dos militares torturadores. Quem fica indignado ao descobrir que a Rede Globo não ocupará o tempo inteiro do Jornal Nacional para denunciar a compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras conclui automaticamente que o governo, além de censurar o noticiário, pressiona a empresa ameaçando retirar suas verbas de publicidade.

Conforme o caso, a situação fica engraçada: as duas faces de um mesmo fenômeno, a estiagem que ameaça deixar parte do país sem água e criar problemas no fornecimento de energia elétrica, passa a ser um fenômeno benfazejo ao prejudicar um partido e, ao mesmo tempo, maléfico por prejudicar o partido adversário.

Raciocínio, zero. Este colunista defende uma profunda reforma no sistema penal, reservando a pena de prisão para quem ofereça risco físico, e impondo a outros condenados tipos diferentes de pena, que passem pela proibição de exercer funções que lhes permitiriam reincidir nos crimes, pelo pagamento de multas, por restrições que podem ser muito severas mas que não exijam encarceramento. O embasamento da tese é, de um lado, econômico: o país não tem condições de construir presídios em quantidade suficiente para os condenados, nem tem recursos de garantir sua manutenção em boas condições; e, de outro lado, pragmático, já que parece claro que a prisão pouco contribui para recuperar e ressocializar os condenados. Claro que uma reforma ampla exigiria estudos que reunissem grandes especialistas. Enfim, caiu uma tempestade sobre o colunista – não pela tese realmente defendida, mas pelo que os críticos imaginaram que deveria ser. E vinham então questionamentos certamente pouco inspirados, do tipo “leve um traficante para sua casa”.

 

Quem quer bacalhau?

E então perdemos tempo para discutir se Roberto Jefferson pode ou não comer salmão na prisão (se puder pagar por ele, por que não? Até reduz os custos com sua manutenção), ou se os lanches do McDonald’s podem ou não ser consumidos por José Dirceu. Por que não? Na opinião deste colunista, até poderiam fazer parte da pena. No entanto, mobiliza-se o aparato jurídico mais caro do país, com o Ministério Público e a Procuradoria da República à frente, além dos advogados dos réus, para debater se sanduíche com gosto de isopor é legítimo ou não no cumprimento da pena. Para os formuladores de opinião, a coisa é simples: há grupos que acham um escândalo o possível consumo de salmão por Jefferson, mas que consideram outro escândalo a investigação sobre o Big Mac de Dirceu; e grupos que pensam exatamente o contrário, e que se insultam o tempo todo. Já a opinião sobre a tese deste colunista é unânime: ele busca disfarçadamente, sabe-se lá por que motivo, tumultuar o bom debate. Boa coisa é que não deve ser.

A situação está tão maluca que até um fato inimaginável está acontecendo: governistas mais radicais atacam o jornalista Eugênio Bucci, petista de carteirinha, diretor da Radiobrás no Governo Lula, pelo hediondo crime de raciocinar. E já o acusam de ter-se bandeado para a direita – talvez até para apoiar o ultradireitista Eduardo Campos, que era esquerdista até outro dia, na luta contra o Governo que abriga esquerdistas como Édison Lobão, Garibaldi Alves, Renan Calheiros e tantos outros.

É por isso que, como Confúcio disse, pessoas inteligentes debatem ideias. Pelo menos escapam deste papel ridículo de colocar os políticos em campo como se estivessem escalando seu time de futebol.

 

Parece que foi ontem

Faz vinte anos que a Escola Base entrou para o noticiário. Faz vinte anos que, todas as vezes que algum fato surpreendente e espetacular explode na TV, os jornalistas mais experientes repetem o mantra “não se esqueçam da Escola Base”. Faz vinte anos que, apesar da Escola Base, casos semelhantes se repetem.

O assunto dominou o país: administradores e funcionários da Escola Base foram acusados de abusar sexualmente dos alunos – crianças em idade pré-escolar. A imprensa deitou e rolou: um jornal chegou a dizer que a Kombi de transporte escolar era um “motel na escolinha do sexo”.

A imprensa deitou e rolou? Sim, mas houve uma exceção: um grande repórter, Antônio Carlos Silveira, do Diário Popular, conseguiu uma matéria exclusiva, em primeira mão, e levou-a ao jornal expondo suas dúvidas sobre a verdade do caso. Havia depoimentos, mas não provas. O diretor de Redação do Diário Popular, Jorge de Miranda Jordão, jornalista notável, de primeiríssima linha, bancou as dúvidas do repórter: a história não se sustentava. E o Diário Popular foi o único a ignorar o sensacionalismo em que caiu o restante da imprensa. Tinha razão: a história era falsa, fruto da imaginação de uma das mães. A polícia, a TV, os jornais, o rádio fizeram o resto – a ponto de transformar em prova de estupro aquilo que, provou-se mais tarde, era uma prosaica assadura no ânus.

O pessoal da Escola Base era inocente. Mas a escola foi apedrejada, seus carros vandalizados, diretores e funcionários tiveram de esconder-se para não ser linchados. Sua vida profissional e empresarial foi destruída. E os jornalistas mais ativos na divulgação da história falsa pediram desculpas.

 

Lições do abismo

Que é que se aprendeu com essa tragédia provocada pela irresponsabilidade jornalística?

Pouco depois, foram presos e escrachados os assassinos do Bar Bodega, e presos ficaram até que se descobrisse, após ampla exposição de mídia, que eles não tinham nada com isso. Algum tempo mais tarde, uma jovem, que se hospedava na casa de um empresário, denunciou à polícia uma câmera no banheiro, destinada a transmitir suas imagens de nudez. O delegado deu entrevistas, apontou o empresário como tarado, mostrou como provas de sua devassidão alguns vídeos pornográficos encontrados em sua casa e fotos dele, nu, ao lado de sua namorada. Aí se descobriu que:

1. O empresário estava na Europa há meses e a moça sozinha em casa. Mesmo que a câmera transmitisse suas imagens, despida, quem poderia vê-las? Na época não havia a tecnologia para transmissão à distância;

2. A câmera, colocada na época em que o filho do empresário era bebê, estava velha, não funcionava, apenas ficava ali até que alguém a retirasse. De tão antiga, já não havia sequer peças se alguém resolvesse consertá-la.

3. As fotos do empresário e de sua namorada, nus, existiam. Haviam sido tiradas por eles, com o consentimento de ambos.

4. Os vídeos pornográficos existiam. Eram vídeos legais, vendidos livremente no mercado, sem qualquer restrição.

O delegado calou-se. Os meios de comunicação que exploraram o caso simplesmente mudaram de assunto. Nem desculpas pediram.

Repetindo a pergunta, que é que se aprendeu com o caso da Escola Base? Que sempre que houver situações como essa os mesmos erros serão novamente cometidos.

 

Vida inteligente

A crônica do sempre brilhante Humberto Werneck, em 16 de fevereiro (“Um poeta no cardápio“, O Estado de S.Paulo), lembrava um episódio antigo e saboroso: a história de Thereza, moça de 18 anos, moradora em Brás de Pina, subúrbio do Rio, cujo sonho era que o poeta e cronista Paulo Mendes Campos fosse a seu casamento. O sonho se realizou: Thereza casou-se em 1964, com Paulo Mendes Campos entre os presentes.

A crônica de Werneck despertou a criatividade da pauta do Estadão. O jornal decidiu investigar o que se passou com Thereza nos últimos 50 anos, de seu casamento para cá. E indicou uma repórter de texto primoroso, Clarissa Thomé, da sucursal do Rio. Sua matéria, muito boa, saiu no dia 16, domingo, no caderno Aliás. Uma delícia, bem feita, contando a história como a história deve ser contada (ver aqui). E provando que ousadia, somada ao talento, costuma dar certo.

 

Nepotismo explícito

Este colunista adverte: as duas notas abaixo são, literalmente, casos de nepotismo. Tanto o livro quanto a exposição envolvem sobrinhos queridos. Mas ambas as notas seriam publicadas de qualquer maneira: além de queridos, e de parentes próximos, são profissionais de altíssima qualificação.

 

A economia como deveria ser

O governo brasileiro anuncia que descobriu a fórmula do sucesso, enquanto desmonta o sistema elétrico, descapitaliza a Petrobras, mostra-se incapaz de executar seus principais projetos – a transposição das águas do rio São Francisco, por exemplo, deveria estar pronta desde 2010, mas continua longe da conclusão. Dois economistas de prestígio, Alexandre Schwartsman e Fábio Giambiagi, apontam limitações do atual modelo econômico no livro Complacência – entenda por que o Brasil cresce menos do que pode. Lançamento no dia 8/4, em São Paulo, com prefácio de Eduardo Loyo, contracapa de Fábio Barbosa (ex-Real e Santander, hoje comandante da Editora Abril), orelha de William Waack. Um bom instrumento para quem quiser refletir sobre os caminhos da economia brasileira.

 

Brasil em Nova York

A Galeria Gravura Brasileira, de Eduardo Besen, está apresentando a exposição “Contemporary Brazilian Printmaking”, no International Print Center of New York (IPCNY). Entre os expositores, artistas de todo o país, com as mais variadas técnicas e estilos, como Nara Amélia, Mônica Barki, Ernesto Bonato, Ulysses Boscolo, Marco Buti, Cleiri Cardoso, Helena Freddi, Sheila Goloborotko, Nina Kreis, Kika Levy, Fabrício Lopez, Alberto Martins, Claudio Mubarac, Laerte Ramos, Augusto Sampaio e Alexandre Sequeira. Até 23 de maio, de terça a sábado, entre 11h e 18h, entrada grátis. Local: IPCNY, bairro Chelsea, Nova York.

 

Como…

De um grande portal noticioso, sobre o avião desaparecido da Malaysia:

** “A Polícia agora investiga se o piloto teria derrubado a aeronave numa tentativa de suicídio”

Traduzindo: “ao suicidar-se”.

 

…é…

De um canal pago de TV, anunciando seu novo programa:

** “Tarefas difíceis: ordenhador de camelos”

Há alguns anos, A Senhora e Seus Maridos, deliciosa comédia estrelada por Shirley MacLaine, mostrava como o destino a transformava sempre em viúva, por mais que se casasse. Um de seus maridos morria ao entrar no estábulo errado na hora da ordenha. Os touros odiaram ser ordenhados. Será que os camelos aceitam melhor esse tipo de procedimento?

 

…mesmo?

De um grande portal de internet:

** “Investigando Lusa, MP descobre suposta fraude bancária”

Como é que se pode descobrir algo que é suposto?

 

Frases

>> Do jornalista Cláudio Tognolli: “Dar entrevista é como cair de moto: você sempre sai arranhado.”

>> Do jornalista Fernando Portela: “José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras quando ocorreu a compra da refinaria de Pasadena, está coberto de razão ao dizer que foi um grande negócio.”

>> Do jornalista Palmério Dória: “Alckmin lança o programa Lata D’Água na Cabeça.”

>> Do jornalista Sandro Vaia: “Apertem os cintos, a gerente sumiu.”

 

E eu com isso?

Aqui, neste mundo encantado, petróleo é a matéria-prima da qual se extrai a gasolina para os carrões. Pasadena fica no Golfo do México, onde há as magníficas praias de água quente da Flórida. Os ratos são Mickey e Minie. É um mundo especial, só para gente muito especial, que sabe aproveitar o lazer.

** “Gisele Bundchen se diverte com a família na praia”

** “Bruce Willys passeia com a esposa grávida no dia de seu aniversário”

** “Deborah Secco curte o dia com seu novo namorado”

** “Miley Cyrus mostra hematoma no bumbum”

** “Renata Vasconcelos troca beijos com o marido no Rio”

** “Calvin Klein janta com amigos em restaurante no Leblon”

** “Vitor Belfort vai com a família para Dubai”

** “‘Dr. House’ se encanta com as mulheres no Rio”

** “Longe dos palcos, Elis Regina era uma grande mãe”

** “Kristen Stewart passeia por Nova York”

** “Karen Junqueira esbanja sensualidade em Angra”

** “Vestido justo realça bumbum de Kim Kardashian em passeio”

 

O grande título

Há manchetes (e combinações de manchetes) muito interessantes. No mesmo dia, por exemplo, o primeiro após o infarto de Renato Aragão, temos nos diversos veículos as seguintes versões:

** “Após infarto, Renato Aragão tem alta e brinca: Já posso jogar futebol”

** “Estou ainda melhor!”

** “Não foi grave, diz Renato Aragão após ter infarto”

** “Renato Aragão deve ir para o quarto ainda hoje”

Detalhe: nesse dia, Renato Aragão estava na terapia intensiva. Depois voltou ao quarto e mostrou que os meios de comunicação são ótimos em previsões: melhorou rapidamente.

E, nessa mesma linha, uma manchete imbatível:

** “Apresentador da (…) teve infarto e morreu ao vivo”

Como diria um espectador muito jovem, I see dead people.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação