Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Cultura do estupro

O fiasco da pesquisa do IPEA sobre a tolerância social ao estupro fez vítimas além dos burocratas atrapalhados. Não falo de mais um arranhão na imagem do Brasil que, a julgar pelo que se lê no exterior, está se tornando um líder em know-how-not. Como não preparar eventos esportivos, combater violência, corrupção e reformar a economia.

A agulha do meu asneirômetro bem que disparou, o que não me impediu de sair repetindo o “erro da planilha” inflacionando o número de neandertais que justificam estuprar uma mulher dependendo do decote ou do comprimento da saia. As vítimas a que me refiro são as mulheres brasileiras que serão estupradas este ano, cujo sofrimento não será evitado pelo circo viral em torno da pesquisa e poderá ser agravado pela erosão da credibilidade sobre o que é, sim, uma epidemia de saúde pública.

Se continuar a tendência revelada em 2012, o número de mulheres à espera de seu agressor no Brasil este ano pode passar de 50 mil. Mas o número, tal como a estatística do IPEA, não inspira confiança porque há uma diferença entre casos de estupro registrados e ocorridos. O crime sexual é a forma de violência mais estatisticamente subestimada do mundo, não importa se num país de burkas ou de fios dentais. E, como sabemos, o crime sexual frequentemente se passa entre conhecidos ou em famílias. Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, em 2010, o FBI registrou 85.593 estupros ou tentativas de estupro. No mesmo ano, o censo americano para estatísticas de justiça registrou 188.380 vítimas de estupro e assalto sexual. Ainda no mesmo ano, o prestigiado Centers for Disease Control, uma agência nacional de saúde, contou 1 milhão 300 mil incidentes numa pesquisa sobre violência sexual entre parceiros íntimos, algo que pode incluir estupro nas mãos do marido ou ser perseguida e agredida por um ex-parceiro. Não é só o IPEA que sofre de confusão metodológica. Parte da confusão vem da definição de crime sexual que, aqui, varia de Estado para Estado.

Só em 2012, o governo federal americano instruiu o FBI a atualizar sua definição de estupro que datava de 1927. Pela primeira vez, a definição estupro não discrimina sexo e a penetração à força pode ser com um objeto. E o estado da vítima – incapacitada por álcool ou drogas de dar consentimento – passou a ser considerado argumento para acusação de estupro.

No começo do ano, quando a Casa Branca anunciou uma iniciativa para combater violência sexual no câmpus universitário, uma das mais conhecidas ONG’s de militância antiestupro e incesto se manifestou contra a ideia da “cultura do estupro” e pediu que os crimes sejam individualizados. A reação veio num debate passional. O que é a cultura do estupro? De maneira geral, esta expressão, nascida nos anos 70, se refere à desinformação da sociedade, à impunidade dos agressores, à representação social da mulher como objeto e a fatores como tradições sociais específicas.

Tormento perene

Na segunda-feira passada [31/3], uma carta anônima sob o título “Dear Harvard: You Win” (Querida Harvard: Você venceu), publicada no jornal da mais conhecida universidade americana, relatava o drama de uma estudante. Ela passou parte de 2013 se queixando a diversas autoridades no câmpus do que descreve como um assalto sexual sofrido no seu dormitório, nas mãos de um colega e amigo que visitou depois de beber demais. A descrição do alegada agressão é perturbadora.

A carta se tornou viral e obrigou a Universidade de Harvard a revisar sua estreita definição de assalto sexual, publicada em 1993. A estudante capitulou e anunciou que vai se mudar do dormitório para não conviver diariamente com o jovem que acusa de agressor.

A expressão “segundo estupro” é usada para descrever a experiência degradante vivida por mulheres que decidem denunciar violência sexual, quando a justiça, as instituições, a família ou os amigos culpam a vítima, não levam a sério a acusação ou protegem os agressores. Certamente a falsa acusação de estupro pode destruir a vida de um acusado. Por se tratar, na esmagadora maioria dos casos, de um crime sem testemunhas, investigar e conduzir processos é um enorme desafio.

Mas se há algo que a pesquisa do IPEA revelou, não nas suas planilhas atrapalhadas, mas no ecossistema do debate social, é a mesma praga da polarização que faz tantas das nossas mazelas passarem pelo moedor ideológico. Quando a pesquisa saiu, testemunhei inúmeras manifestações de triunfo pela confirmação do nosso atraso. Quando o erro foi revelado, cantaram vitória os que se sentem oprimidos pelo esquerdismo infantil.

O crime sexual, muito mais do que outras formas de assalto, é um tormento que pode seguir a vítima pelo resto da vida. Agora, vamos parar de envergonhar o IPEA e nos envergonhar todos para promover a tolerância zero a qualquer forma de agressão sexual.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York