Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Estatísticas e estupro

Desde o início, me chamou a atenção a falta de senso crítico diante da afirmação de que 65% de pessoas concordam que mulheres provocantes merecem ser “atacadas”. O primeiro passo foi acessar o meu próprio entendimento do mundo e chegar à conclusão de que o número é absurdo e irreal. Afinal, onde está o senso crítico em relação a estatísticas e a “pesquisas de opinião”? Ninguém se lembra das pesquisas do Ibope em 1989, que perguntavam: você votaria num candidato analfabeto? E num candidato com curso superior e experiência, você votaria? Ninguém nunca se sentiu sutilmente enganado pela classificação imposta pelo IBGE, seja de raça, gênero ou classe? E os gráficos manipulados, parciais e mentirosos? Basta botar um % ou montar um disco fatiado em cores para sugerir objetividade? Saudades do Jeca Tatu, que fugia das pesquisas do governo como o diabo foge da cruz por temer o “reculutamento”. Sábio Jeca, que intuía que estatísticas são discursos que criam realidades sociais, mais do que supostos desvendamentos da realidade.

A tal pesquisa do IPEA se organiza como “indicadores de percepção social” e opera junto ao público com as seguintes categorias, sob a aparência de frases: “mulher gosta de apanhar”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, a célebre “mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas”, e ainda “as mulatas são mais fogosas do que as mulheres brancas”… No site do IPEA não há explicação sobre a metodologia utilizada, mas há dois arquivos que parecem enigmáticos (microdados e dicionário de dados), porém sobre os quais aqueles que um dia refletiram sobre o que é um “discurso” ou a “verdade” podem tirar algumas conclusões.

Os dados se referem a 3.810 respostas espalhados pelas regiões (como foi a seleção? quantos se negaram a responder? como foi a abordagem e a entrevista?). Interpretando os dois arquivos, percebe-se que, além do perfil socioeconômico, uma pergunta sobre participação no Bolsa Família e uma seção sobre quais seriam os problemas prioritários e secundários do país, foram apresentadas frases aos candidatos que deveriam discordar, concordar, se dizer neutro ou não saber, mas também “concordar parcialmente” ou “discordar parcialmente”.

Essas duas últimas me parecem respostas extremamente fluidas e imprecisas – e é justamente onde podemos perceber a dúvida, quem sabe o constrangimento diante da pergunta do entrevistador, um “não é bem assim”, ou mesmo uma saída fácil para se livrar logo do chato que te parou no meio da rua. Propus-me, então, a fazer uma breve pesquisa sobre a pesquisa. Destaquei algumas perguntas e anotei só as respostas “discorda totalmente”, e em alguns casos somei todas as respostas diferentes de “concorda”. (E nisso, vocês podem perceber que já fiz uma escolha na forma de apresentar os “dados”.)

Perguntas sobre racismo

Vejamos o que consegui pescar por ali:

>> “Um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher” – 2.910 discordam totalmente, somados a todos os demais que não marcaram concordar, são 3.660, ou 96%.

>> “É da natureza do homem ser violento” – 2.357 discordam totalmente. Só 388 afirmaram concordar contra os demais 89%.

>> “A mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade” – 2.056 discordam totalmente.

>> “A mulher que apanha em casa deve ficar quieta para não prejudicar os filhos” – 2.660 discordam, 3.545, ou 93% não concordam com essa frase.

>> “A questão da violência contra as mulheres recebe mais importância do que merece”. Essa resposta parece especialmente interessante para refletir, pois apesar da frase mal elaborada, trata-se de 2.166 pessoas que julgam que essa é uma questão importante, o que já desdiz o isolamento da resposta dada à famigerada frase sobre “merecer” o “ataque”. 89% é o percentual dos que não marcaram “concordar” com essa frase ou, em outras palavras, que acham que existe uma questão da violência e que merece atenção.

De uma forma geral, a todas as frases que incitam e provocam violência e obscurantismo entre os gêneros, as respostas “concorda” oscilaram entre 150 e 500, ou 4 a 13%. A questão da homofobia aparece também em outras frases, e aí o obscurantismo foi mais acentuado, apontando, por exemplo, 32% de discordância de que casais do mesmo sexo tenham os mesmos direitos.

E para fechar, respirando com alívio, a duas perguntas que incidem sobre o racismo, esses são os resultados. “Piada de preto é só brincadeira, não é racismo” – 1.564 discordam totalmente. Vale a pena observar que apenas 579 concordam, em contraponto aos demais 3.231, o que parece um índice interessante de como o país tem mudado na conscientização sobre o racismo. À pérola “as mulatas são mais fogosas do que as mulheres brancas”, 3.214 deram respostas diferentes de “concorda”. Ou, para colocar um %: 84% não disseram sim a essa frase.

Cerca de 60% dos entrevistados é de pretos e pardos e, embora não saibamos se essa foi uma autodeclaração ou uma classificação da perspectiva do entrevistador, constitui, aí sim, algo próximo da realidade vivida e sentida por nós. Enfim, a percepção social daqueles com quem partilhamos o país merece melhor tratamento.

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Ivana Stolze Lima é historiadora, autora de Cores, marcas e falas – sentidos de mestiçagem no Império do Brasil, pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa e professora da PUC-Rio