Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

‘Cem Anos’ é a Bíblia da América Latina

Nos Estados Unidos, a morte de Gabriel García Márquez, despertou homenagens raramente conferidas a escritores contemporâneos de língua estrangeira. Se o sucesso popular de García Márquez é demonstrado nas vendas de seus romances traduzidos para o inglês, os escritores do país de William Faulkner, a maior fonte de inspiração admitida pelo próprio Gabo, são também responsáveis pela estima com que ele foi recebido, desde a publicação de Cem Anos de Solidão aqui em 1970.

“O romance parecia esgotado quando García Márquez e seus contemporâneos surgiram nos anos 60”, diz ao Estado Ilan Stavans, autor de García Márquez, The Early Years (2010) e professor de cultura latino-americana do Amherst. “Depois de Joyce e Kafka, o romance não ia a lugar nenhum. Os autores americanos ficaram aliviados ao ler uma nova literatura de um mundo que aceitava o modernismo.” Stavans considera os pares de García Márquez na literatura universal: “Eu o comparo ao Cervantes de Quixote, a Dante da Divina Comédia e, é claro, a Faulkner”. Dom Quixote e Cem Anos de Solidão justificam a existência da língua espanhola.

Stavans disse que escolheu os primeiros 40 anos de García Márquez para sua biografia literária porque vê a transformação do menino no jornalista que descobre a sua voz no mundo como a gestação de Cem Anos, que ele chama de Bíblia da América Latina. O professor acha que as convicções progressistas do escritor eram mais interessantes no mesmo período. “Depois dos 40, ele se tornou um pensador político preguiçoso”, garante Stavans, citando o exemplo do apoio incondicional a Fidel Castro.

Na Universidade da Califórnia em Riverside o acadêmico americano que mais pesquisou a literatura colombiana, discorda. “Não sou nenhum fã de Castro, mas respeito fidelidade das amizades de Gabo”, comenta Raymond L. Williams. Professor de Literatura Latino-Americana e autor de 15 livros, entre eles, A Companion to Gabriel García Márquez (2013), Williams era um tímido bolsista da Fulbright quando entrou no Hotel Hilton de Bogotá, em outubro de 1975, para ser apresentado ao ídolo que era o tema de sua dissertação. “Ele já era uma celebridade, mas foi generoso comigo, talvez porque eu queria conversar sobre sua complexidade narrativa, num momento em que O Outono do Patriarca não estava sendo bem recebido na Colômbia.”

Amizade cega

Os encontros com Gabo continuaram na década seguinte. Numa visita para uma entrevista na Cidade do México, nos anos 80, Williams conta que García Márquez tirou da estante um livro de ilustrações da Colômbia no século 19 e falou: “Os críticos ficam procurando simbolismo nas minhas imagens, veja, copio tudo daqui”.

Williams comenta a aceitação popular e crítica da obra do colombiano: “Foi o único escritor que conheci que falava como escrevia. As frases cheias de curvas e voltas. Ele conversava assim”.

O impacto do primeiro encontro não com o homem, mas com a obra marcou um garoto boliviano de 14 anos. “Lembro do cheiro do lugar quando fui visitar meu avô em Santa Cruz e encontrei Cem Anos”, conta Edmundo Paz Soldán, expoente da ficção latino-americana da década de 90, cujo penúltimo romance, Norte, foi lançado no Brasil em 2013.

Sua geração é apelidada de McCondo, por ter se rebelado contra o realismo mágico representado por Macondo, a cidade criada por Gabo em Cem Anos. “O problema não era García Márquez”, diz o romancista, no Rio para um semestre sabático da Universidade Cornell, onde ensina literatura latino-americana. “O problema é que o continente ficou conflagrado pelo estereótipo do realismo mágico. Nós quisemos ser urbanos, mas também criamos os nossos estereótipos.”

Paz Soldán é mais fascinado pelo Outono do Patriarca e como Gabo “cego na sua amizade a um ditador, Castro”, conseguiu produzir uma grande obra sobre o poder e a corrupção do poder absoluto.

Do câmpus em Amherst, Massachusetts, Ilan Stavans conclui: “Se a América Latina deixasse de existir amanhã, Cem Anos poderia ser usado para reconstruir o continente no nosso imaginário”.

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Lucia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York