Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando era jornalista, Gabo ‘inventava’ notícias

Após dois dias viajando na selva, García Márquez e seu fotógrafo chegam finalmente a seu destino e têm uma surpresa: a cidade de Quibdó está completamente calma. O correspondente local do El Espectador, Primo Guerrero, havia inventado fatos que narrou para a redação em Bogotá.

Ou seja, García Márquez percebeu que os protestos não ocorreram. Diante do panorama, o jovem jornalista diz a Guerrero que não quer voltar para a capital de mãos vazias. Os dois fazem um acordo e, “com tambores e sirenes”, convocam e organizam um protesto para escrever a reportagem e tirar as fotos.

A matéria é publicada no El Espectador com o título História íntima de uma manifestação de 400 horas e, nela, García Marquez afirma que o protesto durou 13 dias, “nove dos quais choveu de forma implacável”.

A reportagem dizia que, sob a chuva, os manifestantes choravam e se lavavam na via pública.

Anos mais tarde, ao se lembrar do episódio, em uma entrevista com o jornalista Daniel Samper, o escritor confessou: “inventávamos cada notícia…”

O realismo mágico

Uma das características dos romances de García Márquez era sua capacidade de inventar uma “realidade que transborda”, segundo escreveu o crítico Claudio Guillén. E isso está relacionado, em parte, com o uso da hipérbole, o exagero.

“O quanto é comum o exagero no jornalismo de García Márquez?” Para minha tese de doutorado, estudei a promíscua relação entre o jornalismo e a literatura na América Latina.

No caso de García Marquez, é possível detectar exageros e invenções em diferentes etapas de seu jornalismo. Em alguns momentos, esses exageros e invenções estão presentes de uma forma abundante e aberta e, em outras, de forma dosada e velada. Este é um fenômeno que se enquadra no que chamamos de realismo mágico de García Márquez.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, em seu livro História de um Deicídio, documenta a invenção que García Márquez fez do protesto em Quibdó e disse que era parte de sua personalidade aventureira e sua satisfação pelos feitos e pelos personagens inusitados.

Segundo Vargas Llosa, “o que seduzia” García Márquez no jornalismo não eram as páginas editoriais, mas o trabalho da reportagem “que se mobiliza para encontrar a notícia e, se não a encontra, a inventa”.

O poeta inexistente

O crítico Raymond Williams afirma que muitos dos textos jornalísticos de García Márquez são “anedotas ficcionais”.

Em 1948, o autor colombiano dedicou uma coluna de jornal ao poeta César Guerra Valdés na qual contava sobre quando ele visitou a redação do El Universal, de Cartagena, onde Márquez trabalhava.

Márquez elogiou o poeta e argumentou que ele era “autor de cinco livros fundamentais” e “um dos grandes revolucionários estéticos” da América Latina. A coluna ressaltava o calor das palavras do poeta e dizia que, apesar de passar despercebido localmente, o escritor estaria provocando uma renovação na literatura latino-americana.

Entretanto, muitos críticos confirmaram que o poeta César Guerra Valdés nunca existiu.

Mais tarde, trabalhando no jornal El Heraldo de Barranquilla, García Márquez começa a publicar reportagens sobre a vida e os milagres de uma extravagante marquesa alemã, cujo marido havia ordenado o assassinato diversas vezes. Em uma de suas colunas, Márquez recria uma conversa fictícia com a alemã e, no diálogo, diz que todos os seus personagens são “imaginários”.

Inventar um pouquinho

Entrevistei para minha tese Jaime Abello Banfi, diretor geral da Fundação Novo Jornalismo Iberoamericano (FNPI), a escola de jornalismo com sede em Cartagena das Índias fundada por García Márquez, em 1994.

Abello Banfi afirma que há um discurso dúbio nos círculos jornalísticos e literários, já que, por um lado, a posição oficial dos manuais e convenções jornalísticas proíbe a inclusão de dados falsos nos textos de imprensa.

Entretanto, na prática nota-se como os grandes escritores usam licenças poéticas quando escrevem textos jornalísticos.

Em seu contato com García Márquez e com escritores como Tomás Eloy Matínez e Ryzard Kapuscinski, Abello Banfi diz que eles admitiram ter inventado ocasionalmente em suas reportagens. Eles o fazem de uma maneira dosada, de uma forma que os leitores “não se dão conta”.

Isso sim é um reconhecimento de que o terreno entre a ficção e a não ficção é um campo movediço, cuja instabilidade aumentou ainda mais com as novas tecnologias, como a internet.

Zigue-zague histórico

A relação porosa entre a ficção e a não ficção na América Latina não é um fenômeno novo. Márquez é parte de uma tradição latino-americana de escritores que ziguezagueiam entre a produção de notícias e contos, romances e poemas.

As trocas nos dois sentidos são comuns.

O crítico Aníbal González explica como na América Latina, em diferentes épocas, a literatura e o jornalismo têm adotado estratégias de dissimulação e imitação mútuas para evitar a censura perante a vigilância da lei, da religião e do Estado.

Um exemplo de jornalista e escritor, uma figura literária que Roland Barthes chama de ‘escrita-escritor’, é o primeiro romancista latino-americano José Joaquín Fernández de Lizardi.

Ele publicou em 1816, no México, El Periquillo Sarniento, considerado o primeiro romance latino-americano ao mesmo tempo em que editava o jornal O Pensador mexicano.

Desde então a lista de jornalistas escritores tem nomes como José Martí, Rubén Darío, Lima Barreto, José Marín Cañas, Roberto Arlt, Jorge Amado e Tomás Eloy Martínez, apenas para dar uns poucos exemplos.

E aqui me refiro a escritores que trabalharam em tempo integral nas redações.

Porque, se fizer uma lista de escritores latino-americanos que publicaram em jornais, teria que incluir praticamente todos.

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Néfer Muñoz é um jornalista da Costa Rica com doutorado em literatura na Universidade de Harvard. O título de sua tese é “Romanceando o jornal e reportando o romance na América Latina”.