Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Tempos difíceis

Não sei se já falei sobre isso, nesse canto de página. Mas a vasta “celebração” do golpe de 1964 na imprensa e na televisão, nesses últimos dias, me deu vontade de voltar àquele tempo. Só na memória, é claro, que no real aquilo não pode de jeito nenhum acontecer de novo no Brasil. Nunca mais.

O golpe não teve apenas consequências públicas, como bem analisaram por esses dias nossos melhores ensaístas em artigos e livros. Ele mudou a vida de cada um de nós e a percepção que tínhamos dela. Nunca mais fomos os mesmos.

Logo depois do Ato Institucional nº5, em 1969, o sufoco me fez deixar o Brasil num exílio voluntário. Depois de passar uns meses na Itália sem encontrar trabalho, me mudei para Paris onde, graças a amigos meus do cinema francês, arrumei um biscate na televisão local (ainda estatal). Como as notícias vindas do Brasil continuavam péssimas, estava difícil decidir entre a esperança e o medo. O ruim do exílio não é onde a gente está, e sim aonde a gente não pode ir.

Aqueles eram tempos difíceis, sim. Mas que tempos não o são? Como é mesmo muito difícil viver, em qualquer época que seja, temos sempre a impressão de que estamos vivendo o pior momento da história da humanidade. É isso que gera a principal narrativa de conservadores e progressistas. Como escreveu Lévi-Strauss, para os conservadores a idade de ouro está num passado cujo desaparecimento lamentamos com nostalgia. Para os progressistas, a idade de ouro está no futuro, em nome do qual devemos sacrificar o presente. Nenhum dos dois se dá conta de que a idade de ouro é o tempo que nos foi dado viver.

Tenho a impressão de que Shakespeare que, ao lado de Dostoievski e Proust, escreveu quase tudo que se precisa saber sobre a humanidade, percebeu esse equívoco. Desconfio disso pela referência a “tempos difíceis” em várias peças passadas em tão diferentes épocas e lugares. Ela está em Falstaff, quando reclama do tempo em que vive (“Que tempos são esses?”); no Príncipe de Verona, que acusa o tempo presente pela tragédia de Romeu e Julieta; no Hamlet atormentado, para quem “nosso tempo está fora do eixo”.

Detesto esse tipo de acusação contra o pobre do tempo indefeso. Costumamos tratar nosso tempo como terminal, porque incorporamos a ele nossa própria finitude. Mas existem situações excepcionais em que os motivos são evidentes e a reclamação é pertinente. Uma guerra, um desastre natural, uma peste, um regime de opressão. Esse último nos justifica dizermos que, para minha geração, os anos entre 1964 e 1985 (sobretudo os que vão do AI-5 à Lei da Anistia) foram os piores de nossas vidas. Um tempo que gostaria de não ter vivido.

Não é fácil

Para vivermos um tempo como aquele, devemos estar preparados para admitir que tudo em nossa vida estará impregnado pelo desastre e pela tragédia que ele provoca. Ainda sobre Shakespeare e Hamlet, o poeta Hans Magnus Enzenberger, um dos autores que andamos descobrindo durante aqueles anos de tantas descobertas, dizia que em toda dramaturgia há sempre um protagonista e um ou mais antagonistas, como está convencionado desde os gregos. Menos em Hamlet, onde o antagonista do herói é o próprio mundo.

Ali, o obstáculo do herói, a razão de sua loucura, dor ou tormento, é o mundo em que vive. E, como Hamlet se debate contra o mundo, não tem tempo para viver. Jan Kott, em “Shakespeare, nosso contemporâneo”, o melhor texto sobre Hamlet abordado como um herói dos anos 1960, diz mais ou menos a mesma coisa.

Não estou me referindo somente à repressão, à censura, à dor da perda de tantos amigos, de gente que admiramos. Mas também à vida em permanente temor, à angústia cotidiana, à renúncia compulsória ao gozo, à pressão do pequeno terror interno, à extrema solidão de cada um separado dos outros. Uma solidão que acabaria na praga de radical e generalizado individualismo, a única saída que pareceu nos enobrecer.

As pessoas de minha geração se drogavam para escapar do horror à nossa volta, para criar um mundo de fantasia que as protegeria da caretice e da cruel opressão, do inaceitável em torno de nós. A droga era uma resistência suicida ao mundo em que não queríamos viver. Hoje, a impressão que tenho é que as pessoas se drogam para melhor se integrarem ao mundo bárbaro e hipócrita, em que o terror é agora administrado pelas bolsas e pelos bancos.

A vida não é mesmo fácil de ser vivida, às vezes é até compreensivo que nos julguemos vivendo o pior dos tempos. Mas há momentos, como nos anos de trevas da ditadura, em que a vida parece perder seu sentido. Ou nós perdemos o gosto de usufruí-la e apenas tratamos de sobreviver. Como se sobreviver fosse suficiente e Sartre tivesse razão ao se referir à superioridade do ratinho vivo sobre o leão morto. Ou, ainda melhor, como a barata repelente na prisão de “Glória feita de sangue”, de Stanley Kubrick, que sobreviveria a Ralph Meeker se Timothy Carey não a destroçasse com a palma da mão.

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Cacá Diegues é cineasta