Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Sobre interesses comerciais e interesses maternos

Uma rápida busca nos arquivos da memória e lembro-me de pelo menos meia dúzia de comerciais da minha infância. Alguns apelavam para o valor nutricional: o Danoninho valia por um bifinho. Outros, para a utilidade doméstica: o copo da Geleia de Mocotó Inbasa ficava para a mãe. Lembro que toda criança tinha uma Estrela dentro do coração. E sabia como as frutas deviam ser comidas com Farinha Láctea Nestlé: o mamão amassadinho, a maçã raspadinha, a banana picadinha… Como esquecer aquele menininho com os olhos vendados que sabia reconhecer o presunto Sadia? Tenho que confessar que lembro até do jingle de um fracassado creme de queijo que, tenho quase certeza, minha mãe nunca comprou.

Pensei no quanto me lembro dos comerciais da minha infância depois de assistir, em São Paulo, ao encerramento da primeira edição do Fórum Prioridade Absoluta (de 22 a 24/4), organizado pelo Instituto Alana, ONG que tem como missão “honrar a criança”. O objetivo do fórum era, obviamente, discutir como colocar as crianças brasileiras em primeiro lugar; como priorizar seus direitos e necessidades. Fui ao último dia de palestras como jornalista – falariam de temas como internet e publicidade infantil – e também como mãe. Desde que me tornei mãe, há quase dois anos, passei a me interessar mais por assuntos ligados a crianças. Imagino que isso deva acontecer com a maioria das mães: de uma hora para outra, você se torna a principal responsável pela criação e, principalmente, pela educação de uma pessoinha que ainda não sabe responder por si própria. Aí, você se dá conta do tamanho do trabalho, da responsabilidade e do peso de cada decisão que toma.

Desta forma, a publicidade infantil, algo tão presente na minha infância e sobre a qual eu nunca havia ponderado, de repente passou a me incomodar. Meu filho ainda não sabe o que é publicidade. Mas vai saber, e eu acredito que não vá demorar muito. Meu filho brinca na pracinha, adora desenhar e amassar massinha, mas não sou ingênua de achar que poderei isolá-lo do mundo digital. Nem quero que seja assim. Tenho consciência, no entanto, de que terei que estar presente, de olho, porque sou a principal interessada no bem dele.

Pequenos adultos

Em uma das palestras do fórum, o professor de ética Julio Pompeu falou dos argumentos usados para a defesa da publicidade infantil. Há dois tipos de discurso: em um deles, a publicidade é vista como algo inocente; no outro, como uma questão de escolha. Neste segundo discurso, as crianças são tratadas como pequenos adultos e sua precocidade como consumidores é celebrada.

Recentemente, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) aprovou uma resolução que considera abusiva qualquer tipo de publicidade direcionada a crianças. Segundo o conselheiro Diego Medeiros, que representou o Conanda no fórum, o desafio do órgão é colocar o tema na pauta política e judicial. Com a Resolução 163, o Conanda não está criando uma proibição, explicou Diego, e sim regulamentando uma proibição já expressa no Código de Defesa do Consumidor.

Poder de compra

A questão é complexa. Por um lado, vivemos em uma sociedade consumista, precisamos e queremos ter coisas. Com nossas crianças isso funciona da mesma forma: elas precisam de coisas e irão desejar outras coisas. O que tem de ser discutido é se elas têm a mesma capacidade que nós, adultos, temos de ser responsáveis pelas decisões que tomamos. A publicidade infantil vê e trata estas crianças como potenciais consumidores, detentores de um poder absurdo: segundo um guia distribuído pelo Instituto Alana no fórum, as crianças chegam a influenciar 80% das decisões de compra de uma família. Está aí, para os fabricantes de produtos voltados aos pequenos, a importância de anunciar diretamente para eles. Os personagens de desenhos que estampam as embalagens de biscoito e shampoo, as mochilas e os tênis são, hoje, chamarizes fortes, assim como eram as musiquinhas-chiclete dos comerciais de TV da minha infância.

Cito estes comerciais para ressaltar como eles ficaram gravados, tantos anos depois, em minha memória. Para mim, fica claro o tamanho de seu poder. No entanto, não penso nos anunciantes e nos publicitários como um grande bicho-papão que quer se aproveitar das criancinhas. Acho que estão apenas cumprindo seu papel de acordo com seus interesses. Esta é, na minha opinião, a principal questão: o interesse deles é ganhar dinheiro, e não a educação, a saúde e o bem-estar do meu filho. Entra aí a importância das decisões e da presença dos pais. Como bem resumiu o professor Julio Pompeu em seu discurso, “aqueles que defendem a publicidade [infantil] não enxergam que estão delegando às empresas e às agências de publicidade a educação ética e moral dos filhos”.

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Leticia Nunes é editora-assistente do Observatório da Imprensa