Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Notas sobre um escândalo

O evento que encerrou um seminário do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense (UFF) no campus de Rio das Ostras, em 28/5, foi explorado em todo o seu potencial de escândalo por sites jornalísticos, blogs da mais variada espécie e, em seguida, pela imprensa tradicional: a título de realizar uma performance artística em protesto contra estupros e outras agressões a mulheres na cidade, uma mulher se expôs num ritual de automutilação e teve, ou simulou ter, a vagina costurada. As cenas de nudez e exibições com fogo, facões e um crânio humano levaram a denúncias de orgias e prática de satanismo, numa interpretação literal do título provocativo do evento: “Xereca Satânica”.

A principal protagonista da performance é a mesma que, durante a vinda do papa para a Jornada Mundial da Juventude, no ano passado, participou da Marcha das Vadias, que cruzou com a multidão de católicos em Copacabana, e provocou escândalo ao se masturbar com um crucifixo, além de quebrar imagens de santas.

As cenas caíram na rede e suscitaram polêmica em pelo menos quatro níveis: sobre o direito à liberdade de expressão, sobre o que é legitimado como arte, sobre os limites a serem seguidos por eventos acolhidos em uma instituição pública, e sobre a informação que circula pela internet, com ou sem a mediação jornalística, a respeito de fatos produzidos com o deliberado objetivo de chocar o público.

A questão dos limites

O direito à liberdade de expressão é garantido pela Constituição, mas nem por isso é irrestrito. Racistas, por exemplo, não têm o direito de expressar seu racismo: se o fizerem, se expõem às sanções legais. Cada um pode dispor de seu corpo da forma como bem entender, mas trotes violentos ou humilhantes – que também são uma forma de expressão – não são tolerados, mesmo quando os participantes concordam, ou dizem concordar, em se submeter a eles.

O debate sobre o que se entende por arte acompanha os dois séculos que definem o que chamamos de modernidade. O apelo à escatologia como forma de chacoalhar os valores estabelecidos – “épater le bourgeois”, como se costumava dizer – também é muito antigo. O que importa aqui, entretanto, são os limites que uma instituição pública deve estabelecer para promover experiências ou sediar eventos nesse campo. Esses limites são necessários justamente porque uma instituição pública é sustentada com o dinheiro de todos os cidadãos e precisa respeitar a diversidade tão defendida por movimentos que se pretendem à contracorrente do senso comum, mas que não costumam entender a necessidade de conviver, nesse espaço público, com quem tem outros valores.

A ruptura dessas regras, ainda que involuntária, pode provocar consequências graves. Um caso recente, ocorrido na TVE gaúcha, ilustra bem a situação: o grupo feminista “Putinhas Aborteiras”, integrante do movimento Marcha das Vadias, participou de um programa de entrevistas em fins de abril. A entrevista foi ao ar às 18h30, mas a parte musical, devido ao teor das letras, teve de ser exibida de madrugada, de acordo com os critérios de classificação etária. Porém, por uma falha interna, o vídeo integral, com as músicas, foi parar no site da emissora, o que deu o pretexto para que jornalistas e políticos de direita passassem a acusar o governo de desvirtuar os princípios de uma TV pública – e, ainda por cima, “educativa”, conforme a nomenclatura herdada do período ditatorial.

O ataque como defesa

A Polícia Federal abriu inquérito para apurar o ocorrido no Polo Universitário de Rio das Ostras. A reitoria da UFF divulgou comunicado no qual incentiva a colaboração com as investigações e afirma não compactuar “com qualquer tipo de atividade que, desvirtuando de sua essência institucional, extrapole os limites do razoável, atentando aos valores da liberdade e igualdade, ou ofendendo a dignidade da pessoa humana”.

A má repercussão do que ocorreu levou o chefe do Departamento de Produção Cultural daquele campus a escrever em seu mural no Facebook um texto no qual, para justificar a promoção do evento, desqualificava qualquer crítica como forma de intimidação e censura, atribuindo-a a pessoas que não admitiriam “qualquer espécie de desvio do padrão ou mesmo qualquer espécie de afronta à sua sensibilidade confortável, conformista e preguiçosa”.

No mesmo texto, após ressaltar que não houve “rituais satânicos” no evento, o professor defendia o caráter laico da universidade pública, que garantiria a “qualquer manifestação religiosa o mesmo grau de respeitabilidade: sejam missas católicas, evangélicas, judaicas, budistas ou satânicas”. Sustentava ainda que a performance foi realizada por um coletivo habituado a práticas voltadas “para chocar a sensibilidade das pessoas e fazê-las pensar sobre seus próprios limites”, mas que a circulação das fotos na internet deu ao evento uma dimensão que ultrapassou os limites da universidade e o transformou em tema “de blogs sensacionalistas e da imprensa marrom”.

O texto teve mais de mil compartilhamentos e inúmeras mensagens de elogio. Os professores do curso de Rio das Ostras, o Centro Acadêmico local e o colegiado do curso de Produção Cultural de Niterói, sede da UFF, também publicaram moções de apoio aos promotores do evento.

Contradições

A tentativa de silenciamento de toda crítica, entretanto, não condiz com a defesa da universidade como local de debate e de produção de conhecimento. Deveria ser claro, por exemplo, que o caráter laico da universidade a obriga a não acolher qualquer tipo de culto, exatamente para evitar privilégios e preconceitos. Ao mesmo tempo, a legitimação automática de todos os cultos – mesmo os “satânicos” – deriva de uma certa concepção de multiculturalismo que, a pretexto de combater o etnocentrismo, se obriga a aceitar as práticas mais odiosas, como a da extirpação do clitóris de meninas em certas comunidades africanas ou a do apedrejamento de mulheres em certa tradição muçulmana. Essa perspectiva ignora que o respeito às várias culturas precisa se subordinar à defesa de valores universais da humanidade, como o respeito à vida e à dignidade de todo ser humano.

O mais importante, porém, para o que nos interessa aqui, é a crítica à deturpação e à exploração sensacionalista do evento nas várias mídias, jornalísticas ou não. Especialmente pela contradição de origem: a performance foi feita para chocar, mas aparentemente não deveria ultrapassar os muros da universidade. Foi realizada num espaço anexo ao do campus, por onde “ninguém passa” e onde estiveram apenas “os que quiseram saber do que se tratava”, como escreveu o professor.

Mas, se era só para iniciados, como atingiria o objetivo de chocar?

O escândalo inevitável

É claro que houve exageros, como é previsível em casos assim, e certa mídia preferiu excitar a imaginação do público ao destacar as denúncias de “orgias” e “rituais satânicos”, como fez o portal G1 em 30/5 (ver aqui), onde por dias seguidos a notícia esteve entre as mais lidas: quando o interesse começava a baixar, logo se “atualizava” a matéria de maneira a estimular o índice de “cliques”. O site SRZD, o primeiro jornalístico a tratar do caso (no início da tarde de 30/5), também citou os “rituais de satanismo” e deu ênfase à agressão corporal, e não à denúncia contra a violência sexual, pretendida pela performance: “Exclusivo: mulheres costuram vagina em festa em campus da UFF, denunciam alunos” (ver aqui).

O Globo só abordou a história dias depois (terça-feira, 3/6), em página inteira que abria para questionamentos a respeito de arte e educação. Reproduzia as justificativas do chefe do Departamento mas apresentava contrapontos, como o de uma socióloga que criticava a costura da vagina como forma de protestar contra estupros: “Não é costurando que você vai impedir (atos de agressão contra o corpo da mulher). É o contrário, é respeitando a abertura. (…) é lamentável que seja colocado como algo libertador. Não é”.

À parte a diferença de enfoque, a simples exibição das fotos provocaria escândalo. Mas não foi com esse objetivo mesmo que se produziram aquelas cenas?

Fato ou simulação?

Talvez pela repercussão negativa, começaram a surgir nas redes sociais comentários ironizando quem acreditava que a tal mulher tivesse tido, de fato, a vagina costurada. Tudo não teria passado de uma encenação, que a imprensa, por incúria ou má-fé, tomou a sério.

Se tivesse sido assim, o chefe do Departamento poderia ter aproveitado a ocasião para esclarecer. Pelo contrário, escreveu: “A costura de partes do corpo, inclusive da região genital, não é novidade para qualquer pessoa que tenha lido mais de um parágrafo sobre arte contemporânea posterior aos anos 1970”.

Mas a sugestão de “encenação” – à parte o que possa significar como forma de suavizar as responsabilidades pelo ocorrido nas dependências de uma instituição pública – é oportuna porque remete à discussão sobre a publicação dos chamados “pseudoeventos”, ou factoides: fatos produzidos especialmente para se tornar notícia.

Ao discutir esse conceito proposto por Daniel Boorstin nos anos 1960, o sociólogo Herbert Gans argumentou que “todas as atividades que se transformam em reportagem são eventos de mídia; se elas são espontâneas ou produzidas é menos importante do que se elas se tornam notícia ou não”. Mais importantes seriam os efeitos produzidos a partir delas.

Da mesma forma, no caso, importa pouco se o que ocorreu foi ou não uma simulação. O potencial de escândalo estava dado e seria inevitavelmente explorado. Talvez o que não se imaginasse fosse a perda de controle sobre a condução da polêmica – a suposta intenção de denunciar daquela forma a violência contra a mulher, sem pensar nas consequências da utilização de um espaço institucional –, mas quem entende minimamente de serviço público e de mídia e, mais ainda, quem produz eventos para a mídia, deveria saber que esse controle é impossível, sobretudo porque hoje não há informação que não caia na rede. E o que cai na rede vai ser reproduzido, reinterpretado e, eventualmente, distorcido de acordo com os interesses ou os juízos de valor de cada um.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)