Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A mordida uruguaia e a web estatal cubana

O comentário do site cubano Granma (26/6), sobre a mordida do jogador Suárez no italiano Chiellini na Copa do Brasil, e a reação que provocou entre seus leitores, oferecem um bom panorama sobre as condições da liberdade de expressão e do acesso à web na ilha do Caribe. A página representa de forma oficial a estrutura de poder e propaganda do Partido Comunista em Cuba, mas abriga comentários de gente que saiu do país, insatisfeita com os rumos da política e da economia. Além de outros comentaristas de fala hispânica.

 

O artigo, escrito por Aliet Arzola Lima, apoia com ardor a punição exagerada que a FIFA impôs ao jogador charrua. O texto demonstra uma submissão absoluta e sem contestação à autoridade da organização suíça. Contestar autoridades não beneficiaria em nada aqueles que querem que Cuba continue à margem do socialismo democrático. A cobertura da atitude bizarra de Suárez foi, no mínimo, oficialista.

O autor fez uma descrição minuciosa da punição desproporcional aplicada pela FIFA ao centroavante uruguaio, acentuando todos os detalhes e a extensão da dura pena aplicada ao jogador. Que tem o apoio da maioria quase absoluta de seu povo e de seu presidente, o guru dos socialistas democratas latino-americanos, o genial presidente uruguaio José ‘Pepe’ Mujica, que acredita que “o que não foi marcado acabou-se”. A declaração foi feita ao site da revista argentina El Gráfico (25/6). A mordida não foi registrada na súmula do jogo. A irregularidade foi detectada por câmeras e isso para Mujica é heresia: elas não devem impor punições a jogadores.

Desafio ao poder

Enquanto isso, na ilha socialista do Caribe, alguns comentários postados por internautas mostraram que a mentalidade stalinista e a obediência inquestionável ao Estado ainda estão vivas e bem em Cuba. Vejamos esta pérola do segundo comentarista do artigo:

“Assim se castigam as indisciplinas sociais, lamentavelmente uma extraclasse, mas não se pode permitir. Corrigir a tempo evita a desordem total. Se em nosso país tivessem agido assim contra todo o mal feito não estaríamos como estamos.”

Puro stalinismo. É visível a preocupação com a ordem e a ‘disciplina social’ herdada dos tempos das verdades eternas do ‘socialismo científico’. O uso da punição da FIFA como exemplo para a política local também salta aos olhos. Mas existe coisa pior ainda, entre os comentários pró-punição exemplar ao jogador. Como esta observação do terceiro comentador do artigo: “Muito merecida a sanção. É incalculável o dano que se fez agora ao Uruguai, metido no meio da luta, ele era peça chave. Devemos tomar como exemplo o rigor da FIFA ante as indisciplinas”.

Que tal isto, leitor(a)? O sujeito quer para Cuba a justiça da FIFA, uma organização mergulhada até o pescoço em denúncias de corrupção. Que depois de insultar o Brasil várias vezes agora mudou de ideia e teve a hipocrisia de declarar que esta poderá ser a Copa da Copas “dentro do campo”. O site esportivo Lancenet comentou (27/6):

“As críticas e chutes no traseiro por parte do secretário-geral da FIFA ao Brasil ficaram para trás. Agora, após o término da primeira fase, Jérôme Valcke é só elogios ao Mundial de 2014, tanto dentro quanto fora de campo.

“– O Brasil está na rota do sucesso na organização da Copa do Mundo, dando a impressão que vai ser a Copa das Copas – disse o dirigente, em coletiva nesta sexta-feira no Maracanã, reforçando o alto nível que tem visto dentro de campo”.

Sugerir a FIFA como exemplo de imparcialidade e justiça é um delírio inconcebível no mundo contemporâneo. Mas muitos outros cubanos pensam diferente. Mesmo entre os que habitam a ilha e concordam com a punição, muitos creem que ela foi exagerada e poderia ser aplicada depois do mundial. Seria o mais justo e o melhor para o torneio. Que perdeu muito sem Suárez e com esse timinho do Brasil, que rebaixou a qualidade das competições com uma vitória frustrante sobre o Chile, nosso velho “freguês de caderno”. Foi mais uma vitória de sabor amargo. As ‘feras’ de milhões de dólares do Brasil não conseguem mais se impor sem esforço ao valor de equipes com menos luxo nas roupas e mais garra dentro das quatro linhas.

Mas o mundo do esporte não é suficiente para completar o desenho da complexa situação do acesso à web em Cuba. Que é assunto mais importante do que os juízos duvidosos da FIFA. Duas postagens ganharam destaque no tema: a primeira, da professora e jornalista cubana Elaine Díaz, que publicou um texto com as diferentes posições sobre a situação delicada de um governo socialista sem destino certo e os internautas do país, que pressionam por maior abertura.

O artigo de Días no Globalvoicesonline (27/6) é um típico texto de jornalismo da web. É uma colagem de diversos pontos de vista do debate sobre a situação dos acessos restritos à web em Cuba e a oposição, concentrada em blogs publicados em plataformas internacionais. Todos intercalados por comentários da jornalista. Postar em plataformas estrangeiras em Cuba é ilegal desde a publicação da postura 127/2000. A lei que controla a internet é de 1994 e ainda está em vigor.

Cuba tem um decreto que regula o acesso da população a internet, o de nº 209, “que dispõe sobre o acesso as redes de acesso global”. Segundo ele, o acesso à web deve ser organizado:

“Em função de interesses nacionais, priorizando na conexão as pessoas jurídicas e as instituições de maior relevância para a vida e o desenvolvimento do país (…). Esta política deve assegurar que a informação difundida seja fidedigna, e a que se obtenha esteja em correspondência com nossos princípios étnicos, e não afete os interesses de segurança do país (…). Para garantir o cumprimento dos princípios expostos pelo presente decreto, o acesso aos serviços de redes informáticas de alcance global terá caráter seletivo”.

A maior parte dos principais serviços de informação na web só está disponível para jornalistas. Que não podem publicar tudo o que querem. Existe censura em Cuba. E resistência. Elaine Díaz, aos postar no Globalvoicesonline, está desfiando o poder: ela é professora e jornalista em Havana, e publica em uma plataforma internacional. Em Cuba, o governo olha para o outro lado enquanto ativistas pedem mais acessos e menos vigia estatal.

Custo alto

Outra página que abordou o assunto foi a do El País (7/4), em sua versão online em português. O site do jornal espanhol ressaltou as péssimas condições de conectividade na ilha. A população pressionou por acessos individuais e o governo prometeu ampliar o acesso doméstico à web “com restrições” a sites “contrarrevolucionários”. Burocratas das tecnologias da informação afirmaram que em Cuba não há censura ao acesso dos cidadãos à rede mundial de computadores:

“Não há censura, exceto pela incapacidade técnica de fazer mais do que fazemos com os orçamentos que temos”, afirmam Tania Velázquez e Luis Manuel Díaz, diretores da ETECSA, em uma das 118 salas abertas em todo o país, com 520 computadores e velocidade 2G. Ministérios e órgãos públicos navegam numa intranet própria. “Precisamos investir mais, na medida do possível, para termos mais capacidade técnica, mas não há barreiras regulatórias nem comerciais. Nosso objetivo é chegar a todos os lares”.

O argumento dos burocratas parece muito com discurso oficial escrito por assessores de imprensa da estatal de TI da ilha. A realidade cubana cotidiana é a internet das salas públicas lotadas e controladas pelo estado. Os domínios e servidores estatais que os cubanos são obrigados a usar por falta de opção. E a ubíqua presença da supervisão do estado bisbilhotando a vida do povo.

Os internautas cubanos já cansaram da mentalidade retrógrada da velha guarda do Partido Comunista, quando o assunto é internet. Foram influenciados pela paranoia estúpida de Stalin. Que acreditava que a ciência da computação era “contrarrevolucionária”, nos anos de 1950. Essa ideologia influenciou a nomenklatura cubana, mesmo depois de ter sido abandonada nos anos de 1960 pelos próprios russos.

Eles temem a ‘contaminação ideológica’ que poderá virar a cabeça do povo cubano em direções que não convêm ao Estado paternalista. Os cubanos, mesmo hoje em dia, depois de algumas concessões feitas pelo governo, ainda não puderam viver a revolução digital como outros países latino-americanos. Mesmo com um índice de desenvolvimento melhor que a maioria dos países latino-americanos.

O país tem apenas dois milhões de celulares, em um universo de 11 milhões de cubanos, informou o El País. E apenas 330 mil assinantes de telefonia móvel com acesso à internet. O atraso é grande e os limites são muitos, mas os cubanos não desistem. O preço do acesso à web também é proibitivo para a população local:

“A julgar pelo que se vê em alguma das salas de internet em Havana, nem a política, nem as notícias, nem a guerra de blogueiros parecem estar entre as prioridades declaradas da multidão de cibernautas que se acotovela nos horários de pico. “Eu acesso as redes sociais e checo as mensagens da minha família que está na Espanha… E é muito caro”, conta um usuário que ganha salário em pesos cubanos, mas paga a internet em pesos convertíveis”.

Cubanos pagam caro e são obrigados a enfrentar ambientes lotados de gente que procura conectar-se a web. É uma triste realidade, em termos de acesso a rede mundial de computadores. Os americanos, de acordo com o El País, ainda tentaram invadir a central de telefonia celular Cubacel através de um serviço de comunicações bancado por Washington. O governo Obama apoiou e a cúpula do Partido Comunista em Cuba aproveitou-se da situação para manter sua postura de controle sobre a web.

Temor do governo

É por essas e outras que o atraso no acesso individual privado à web continua em Cuba. Limitações internas e externas, somadas à desconfiança das tecnologias de comunicação pela velha guarda do partido impedem a disseminação ampla do uso da internet. O povo não consegue acesso pessoal não-controlado à rede, nem liberdade para desfrutar do melhor dela. O governo prometeu, já recebeu ajuda tecnológica da Venezuela para aumentar sua largura de banda, mas ainda teme que a web liberada totalmente possa levar ao caos e ao desgoverno.

A internet em Cuba, depois da chegada do cabo de fibra ótica à ilha, deveria estar mais avançada e barata, mas o regime teme as redes sociais e seu poder de mobilização. Junto com tudo mais que ameace atrapalhar a lenta transição que a economia cubana precisa fazer para manter a sobrevivência digna de seu povo.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor