Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Quanto mais eu pensava na morte dele, mais eu ria

O primeiro telefonema foi hoje (sexta, 18) às dez pras sete da manhã, de uma rádio. Evidentemente que eu estava dormindo e fui quase nocauteado com a notícia da morte do nosso sapeca baiano.

Não consegui dizer nada, pedi desculpa e fui tentar dormir de novo. E, quanto mais eu pensava na morte do João Ubaldo Ribeiro, mais eu ria.

Eu me sentia feliz por ser da mesma geração dele, ter lido praticamente tudo que escreveu, trabalhado com ele, viajado com ele, e sido “correspondente estrangeiro” em duas Copas (94 e 98) com ele. Mas, o melhor, a gente sempre ria muito. Sempre. Acho que nunca falamos sobre literatura. Sempre falávamos sobre o nada. Falávamos merda, pra ser mais claro.

Depois de muita luta ele deixou de beber. Já há vários anos não bebia. Mas nunca perdeu a voz de quem estava de pilequinho.

Gostava de deixar seus recados de e-mail gravados. Eu ouvia, era voz de pileque. E ele não havia bebido. Dizia que “continuava com o sotaque de bêbado”. E de bêbado baiano, o que é irresistivelmente gostoso.

Deixando de beber, passou a estar sempre com um copo de guaraná com gelo nas mãos. Foi aí que surgiram os narizes. Nos encontramos um dia numa feira de livros e ele:

“O problema são os narizes. O indivíduo me vê com aquele guaraná com gelo, não acredita, tira o copo na minha mão e mete o nariz lá dentro. Acho isso muito deselegante. São muitos os narizes! Narizes de todas as cores, formatos e tamanho. Dentro do meu copo! E tem uns filhos da puta que não confiam na primeira cheirada e cheiram de novo”

No seu mais célebre livro, “Viva o Povo Brasileiro”, colocou a epígrafe: “O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”.

A frase resume não apenas TODA a obra do João Ubaldo, como é a cara dele. Melhor contador de casos do que ele vai ser difícil encontrar.

No ano passado foi entrevistado pelo “Roda Viva” e pediram que eu fizesse uma pergunta pelo Skype. Tive a péssima ideia de falar nas nossas idades.

“Jubaldo, onde está doendo?” Ele, cinco anos mais velho do que eu, ficou olhando para a tela com a minha imagem fixa. Riu. “Eu acho que está doendo mais em você do que em mim.”

E voltou a rir. Estou contando a história porque foi nosso último encontro. A última vez que nos vimos não foi ao vivo, não teve abraços, beijos.

Foi totalmente através de satélites. Satélites artificiais. Isso ainda assusta baianos e mineiros como eu. Acho que é aí que estão as nossas dores.

Ontem, vendo um documentário no SporTV sobre a Copa de 94, me lembrei muito dele. Um dia estávamos numa festa, num quintal, e ele me pediu cigarro. Estava proibido de fumar, jurou que seria só aquele na Copa toda.

Dei um, ele pegou o meu isqueiro e foi lá para o fundo. Ficou fumando escondido atrás de uma árvore.

“Tava fumando escondido de quem?”

“De mim.” Rimos.

E já que comecei com a epígrafe, termino com a última frase do mesmo livro: “Ninguém olhou para cima e assim ninguém viu, no meio do temporal, o Espírito do Homem, erradio mas cheio de esperança, vagando sobre as águas sem luz da grande baía”.

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Mario Prata é escritor, cronista, dramaturgo e jornalista