Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O valor do jornalismo contextualizado

Divinamente, Milton Nascimento interpreta Durango Kid (1970), música composta por Toninho Horta e Fernando Brant:

“Propriamente eu sou/ Durango Kid/ eu vim trazer, eu vim mostrar/ novo jornal, novo sorriso/ Propriamente dizer/ o só exato/ pois hoje eu sou/ o que eu fui/ não desmenti o meu passado./ Esse jornal é meu revólver/ esse jornal é meu sorriso”.

Vale lembrar que Durango Kid fez grande sucesso na televisão brasileira nos anos 1960, apresentando um cowboy fictício que agia como Robin Hood. Sabemos que Robin Hood foi um fora da lei que roubava da nobreza (governo) para dar aos pobres. Isso nos tempos do rei Ricardo Coração de Leão, que liderou a Inglaterra entre 1189 a 1199.

Por associação, a música em destaque celebra a promoção de um jornalismo voltado para atender aos anseios dos oprimidos pela tirania do poder dominante. Desse modo, o jornal alternativo, na condição de arma política de empoderamento das classes populares, visa a atender à conscientização pública, fazendo repercutir a verdade censurada pelas manipulações ideológicas e demais medidas arbitrárias de cunho hegemônico. Como veículo de oposição ao regime ditatorial, acredita-se no poder revolucionário do jornalismo comprometido com a democracia e o bem-estar social, via liberdade de expressão com responsabilidade argumentativa.

Apresentados os méritos da imprensa, convém também salientar seus vícios abusivos, principalmente quando ocorre a queda do jornalismo contextual em nome do sensacionalismo imediatista e, por vezes, mórbido e mercenário. Há que se lembrar da canção Notícia de jornal (1975), composta por Haroldo Barbosa e Luis Reis. Privilegia-se o jornalismo factual, preocupado excessivamente com a abordagem da notícia, ao tentar destacar o que aconteceu, sob a tutela de uma narrativa predominantemente dramática e performática, enquanto uma linha editorial mais sóbria e relativizadora, sendo respaldada em dar conta da maneira como aconteceu o fato e o porquê da ocorrência, fica à margem do processo jornalístico.

Na voz marcante de Chico Buarque, a música em questão também se evidencia como crônica urbana, que destaca a falta de precisão do noticiário, uma vez que, a cada dia, o que vemos é um jornalismo predominantemente espetacularizado e estigmatizador, principalmente quando se retrata a vida das classes populares e seus dilemas existenciais. É raro, portanto, observar um jornalismo de análise, interpretativo, contextualizador, humanizado e investigativo:

“Tentou contra a existência num humilde barracão/ Joana de tal por causa de um tal João/ Depois de medicada retirou-se pro seu lar/ Aí, a notícia carece de exatidão/ O lar não mais existe, ninguém volta ao que acabou/ Joana é mais uma mulata triste que errou/ Errou na dose, errou no amor/ Joana errou de João/ Ninguém notou, ninguém morou/ Na dor que era o seu mal/ A dor da gente não sai no jornal”.

O papel social da imprensa

Por que “a dor da gente não sai no jornal”? Acerca deste problema, a professora e jornalista Elen Cristina Geraldes, participante do livro Comunicação: discursos, práticas e tendências (2001), oferece um parecer interessante:

“O jornalismo é produto, quer público, quer ser consumido. E busca as narrativas. Mas ele não paga o preço exigido: render-se ao imaginário, soltar-se, dar um tempo à razão instrumental, que esvazia o conhecimento e o faz refém da técnica. O jornalismo usa as narrativas, abusa delas e finalmente as transforma. No jornalismo, narrativas-vida são quase sempre narrativas-fórmula.”

Sobre a corresponsabilidade da imprensa na promoção de eventos desintegradores das relações sociais (a banalização da violência, o incentivo à pedagogia do terror e pânico, a construção de estereótipos e a ordem desigual introjetada pelo campo simbólico administrado pelos meios de comunicação), sabe-se que este tipo de jornalismo, em nome da busca pela novidade e pelo sensacional, colabora para a instituição massificadora da transgressão como estágio de regra e da norma como o regime de exceção. A corrente sensacionalista mistura informação e opinião. De um lado, a notícia pretende funcionar como um misto de relato fiel e boletim de ocorrência expedido pelo jornal. A opinião vem salpicada, a título de pré-julgamento, e incrementada por uma ordem persuasiva, que lança mão da sobriedade, para acompanhar a efervescência emocional – o calor da hora – provocada por uma narrativa em que o fato ganha contornos dramáticos, e o contexto, pertencente à ordem reflexiva, “amarga o banco de reservas”.

Machado de Assis apresenta, na crônica de 16/09/1894, uma comparação que simboliza bem as repercussões de uma notícia trágica: mais vale “o espetáculo de uma perna alanhada, quebrada, ensanguentada” do que “o da simples calça que a veste”, conforme confessa sem titubear o narrador para depois dar-nos o motivo: “as calças, esses simples e banais canudos de pano, não dão comoção”. Comoção significa abalo de certa gravidade na ordem pública, sacudidela, choque resultante de descarga elétrica. Estes sentidos fazem da comoção a palavra-chave que movimenta o fazer jornalístico de viés sensacionalista.

Ao contrário dos ditames sensacionalistas, concentrados na mercantilização da informação e nos desejos obscuros da mente humana voltados para a pulsão de morte, o jornalismo contextualizado ajuda a viabilizar o papel social da imprensa enquanto agente motivador da opinião pública consciente e consistente. Infelizmente, esta proposta encontra forte resistência exercida pelo “jornalismo de impacto”, criado para que a sociedade fique em eterno estado de choque, a ver naufrágios…

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, no Distrito Federal, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG