Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A cartilha do outro

A ideia que fazemos do outro é algo sutil, muitas vezes ilusório. Escrever sobre o outro, esse ilustre estranho, com base em conceitos, entrevistas, admirações ou não, requer certo estilo e habilidade em lidar com a vida em fragmento no gênero jornalístico perfil. Pequenas grandes aventuras do outro estão reunidas nesta 3ª edição revista e ampliada de perfis do jornalista Sergio Vilas-Boas – todos já publicados em versões menores, em periódicos. À esta edição foram incluídos nove perfis, assim como um novo ensaio de fechamento, “A arte do perfil”, espécie de cartilha do outro na qual Sergio generosamente compartilha dicas e conhecimentos com aqueles que se aventurarem a criar perfis com substância.

Nesta série de textos, em que circulam faces diversas como a de um magnata da comunicação, um jogador de futebol e, em sua maior parte, gente do mundo das letras, sejam jornalistas, romancistas, poetas ou tradutores, também podemos vislumbrar uma outra faceta – longe dela estar no limite da invisibilidade –, sem a qual esses perfis não teriam o feitio de latente mosaico de aprofundamento no humano: a do próprio autor-jornalista.

Isso porque ele, municiado não só de suas perguntas e curiosidade, como também de sua presença constante e seu envolvimento vigiado, encontra cenários, cria narrativas (e nelas se insere), tem momentos de reflexão decisivos para um melhor entendimento da personagem em questão (“Fico pensando onde se escondem as demais pessoas modestas, singelas e generosas como Gilvan. Ele existe mesmo? Putz, me esqueci de descrevê-lo fisicamente. Ai de mim”, em Artesão do consolo; ou em Domador de veredas, no trecho “É como se eu já tivesse conhecido aquele homem há séculos”). Ainda, o autor-jornalista dá sugestões e lança pontos de vista vários aos personagens centrais, testando a abordagem mais propícia para cada circunstância, diversificando a angulação. (Como lemos no ensaio aqui presente, “Condição sine qua non em um perfil é a interação autor-personagem, seja quem for” e “Todo perfil é biográfico e autobiográfico porque também diz algo a seu respeito, autor”.)

Assim, o jornalista não se obscurece por detrás de um narrador oculto e irreal, mas participa do texto a ser narrado como elemento ativo, por vezes sentimental, o que não é inédito no jornalismo brasileiro de hoje, mas é um procedimento que muitas vezes carece de técnica e sensibilidade. Quem conhece o Sergio pessoalmente sabe de sua personalidade arguta, seu olhar cristalino e inquieto e sua capacidade de tirar de seus entrevistados matéria de interesse para o leitor, de alicerçar as bases sobre as quais expor coisa tão íntima e dificultosa: o espaço temporal, o caráter, os desejos, as aflições, o modo de viver e ser. Mas não é só isso: tanto em entrevistas de profundidade como em textos de imersão, deve-se entender o momento da fala e o do silêncio, o instante do titubeio e o jorro loquaz.

O apuro sensível é, por si só, pressuposto indispensável para um bom perfil, gênero jornalístico tão em carência no Brasil hoje – no sentido de um texto não só com elegância na escrita e pesquisa séria, como também em relação à escolha criteriosa dos personagens principais, indo além das figuras de sempre. De fato, há, em grandes e pequenos sonhos.ormaçer seu espaço na atualidadeim, encontramos "resume ao essencial, na verdade, as palavras sa uma falta de bons perfis que contemplem personagens fora do circuito artístico ator-cantor-compositor-celebridade-político.

Ensinamentos e percepções

O que mais se vê nas revistas, por exemplo, é um encontro com celebridades ou subcelebridades no qual o jornalista tenta depreender o máximo de informação para gerar algum conteúdo, que dirá conseguir alguma revelação inaudita. Tudo bem, pois, de todo modo, o jornalismo, massivo ou mais inclinado à literariedade, deve ter uma capacidade própria de se reinventar, rediscutir temas. Estes perfis diferenciam-se, sobrelevam-se em favor de uma certa “demora” em sua produção, de um amadurecimento de ideias, por sua capacidade de reflexão e de tempo distendido que lhes foram conferidos.

O sabor levemente datado de alguns textos não prejudica em nada sua relevância e fluidez; eles conseguem manter seu espaço na atualidade. Aliás, como diz o próprio autor, “na tradição clássica do Jornalismo Literário, o texto-perfil é relevante por sua durabilidade e narratividade. Mesmo que meses ou anos depois da publicação o protagonista tenha mudado suas opiniões, conceitos, atitudes e estilo de vida, o texto pode continuar despertando interesses”.

O autor-jornalista é como um regente que escolhe o encaminhamento dessa espécie de sinfonieta que é o recorte biográfico apresentado no perfil. Quando leio os perfis reunidos neste livro, sinto que há uma relativa influência do modo de ser do personagem no estabelecimento da história final, no tom do texto. Seja fragmentário, como o de Fernando Bonassi (“Fugindo da repetição”), divertido e tagarela, como o do jornalista Maurício Kubrusly (“Aquele que viaja”), minuciosamente descritivo, cerebral, como o de Assis Brasil (“Solista da história gaúcha”), a “cronométrica Curitiba” que vemos em “Alma de relojoeiro: Cristovão Tezza”, conturbado, em pingue-pongue (“Ubaldos brasilis: João Ubaldo Ribeiro”), extremamente dinâmico e com muitas falas, como o de Jayme Sirotsky (“O embaixador”), com uma dureza germânica misturada a traços de delicadeza (“Cyberavó no ancoradouro: Lya Luft”) ou o perfil que é quase uma narrativa de viagem, como o de Manoel de Barros (“Arquiteto de microscopias”), o conteúdo mormente vai ao encontro da forma, ou seja, a trajetória de cada personagem recebe, a partir da visão de longo alcance do jornalista, a sua melhor configuração.

Finalmente, o desafio é lidar com as nuances do ser humano e, por que não, com as contradições (“Contemplativa mas antenada; preguiçosa mas cumpridora. De um modo meio germânico, talvez”, lemos no perfil de Lya Luft; “Empenhou-se em conhecer as maiores pequenezas do mundo”, no do poeta Manoel de Barros), para, a partir daí, desvelar um elemento universal, uma redescoberta, um processo de superação. Adentrar no âmago da existência é sempre uma tentativa infundada, e o formato perfil aí está numa missão perversa e permanentemente impossível, ainda que sendo a oferta de uma brecha a fim de sondá-lo, circundá-lo. Diz o autor, no ensaio a esse respeito: “Os perfis elucidam, indagam, apreciam a vida num dado instante, e são mais atraentes quando atiçam reflexões sobre aspectos universais da existência, como vitória, derrota, expectativa, frustração, amizade, solidariedade, coragem, separação, etc.”.

Acredito que o aspecto universalizante, reflexivo e que se debruça sobre a natureza humana, os valores em colapso de nosso tempo e a face do fracasso e da vitória que atravessam este livro é sua marca mais fecunda. Lemos, em “Domador de veredas”, perfil do ficcionista sergipano Francisco J. C. Dantas: “Difícil hoje em dia atingir leitores dispostos a tocar a solidão de um autor. Nós, contemporâneos, parecemos desejar e consumir para suprimento de necessidades concretas. Psicológicas ou afetivas. Somos predominantemente urbanos e não mais nos curvamos a obras interioranas-rurais, que não falam a nossa língua. Dantas acredita mesmo nisso que acabei de escrever”. Já em “Médico no campo dos sonhos”, escreve Sergio: “Também neste ponto, Tostão é uma exceção à regra. Compreendeu que passamos a maior parte da vida nas entrelinhas das grandes e pequenas áreas, em grandes e pequenos sonhos”. E até em passagens à primeira vista mais informativas e objetivas, como “Gilvan é um escritor nordestino e obscuro, como ele próprio se define” (em “Artesão do consolo”), podemos, a partir da síntese de um personagem, pensar sobre a fragilidade de nossa própria condição.

Vale dizer que estes perfis, assim como a franqueza, os ensinamentos e as percepções do autor, que já tive como professor, foram essenciais em minha breve incursão no gênero. Da mesma forma, as técnicas e observações aqui colocadas podem ser úteis na arte de escrever outros tipos de textos que mesclem jornalismo e literatura. Referência nacional indispensável, espero que estes textos, em nova roupagem, possam divertir, emocionar e animar jornalistas e estudantes a se aventurarem nas águas turvas de si e dos outros.

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Coletânea de textos biográficos sobre famosos e anônimos realça também “a arte do perfil”

[do release da editora]

Perfis: o Mundo dos Outros (Editora Manole), de Sergio Vilas-Boas, é uma versão revista e atualizada da obra reúne 22 perfis e um ensaio sobre o gênero perfil. Dentre os retratados estão Jayme Sirotsky (empresário), Mara Salles (chef do restaurante Tordesilhas), Jaqueline Ortolan (comandante de jatos da TAM), o ornitólogo Johan Dalgas Frisch, o ex-jogador Tostão e o escritor Paul Auster.

A obra de Vilas-Boas, que é jornalista, escritor e professor universitário, expressa uma competência narrativa singular. As 22 narrativas são iluminadas por pesquisas, reflexões e insights (os de Sergio e os dos personagens). Os textos se atêm ao que há de universal na experiência humana, mas também às idiossincrasias individuais, incluindo as do próprio autor. De leitura rica e agradável, o livro se destina aos estudantes de jornalismo e também aos interessados nos perfis apresentados.

“Meu trabalho é artesanal. Tudo para mostrar quem é a pessoa, sua personalidade e sua obra, verdadeiramente. Busco ouvir em momentos e ambientes diversos o protagonista e algumas pessoas próximas a ele/ela. E, quando julgo pertinente, revelo também as circunstâncias em que ocorreram os encontros”, detalha o jornalista, que estudou narrativas biográficas em seu mestrado e em seu doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP.

O primeiro desafio, diz o autor, é convencer o protagonista a ceder seu tempo e sua energia (física e mental) para fazer parte de um método mais demorado, diferente daquele empregado pelo jornalismo urgente. “Fugir da superficialidade para tornar a narração mais dinâmica e viva não é fácil, mas sou fascinado por indivíduos, mais do que por grupos, e compreender as trajetórias sempre singulares das pessoas é a minha maior motivação como autor”, acrescenta.

No final do livro, no ensaio intitulado “A arte do perfil”, o autor compartilha um pouco da história do próprio gênero perfil, sua evolução ao longo do século 20 e sua ligação com a vertente do Jornalismo Literário. “Compilei nesse ensaio os meus estudos e as minhas experiências nos últimos 20 anos como escritor e professor”, conta. “Nem sempre é possível realizar tudo o que está indicado no ensaio, porque tanto o personagem quanto o processo de retratá-lo são irrepetíveis – aliás, criatividade e maleabilidade são fundamentais na construção de perfis jornalísticos.”

No dia lançamento, no Teatro Cásper Líbero, Sergio estará acompanhado no palco pelo também jornalista e professor André Santoro (Universidade Mackenzie). André fará perguntas ao autor sobre “a construção de personagens reais” e sobre os bastidores da produção dos perfis incluídos neste livro. A plateia poderá encaminhar perguntas ao autor também. Em seguida ao bate-papo, haverá coquetel e autógrafos.

Sobre o autor

Sergio Vilas-Boasé jornalista, escritor e professor de reportagens especiais na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Autor de Biografismo: Reflexões sobre as Escritas da Vida (Unesp, 2ª edição, 2014) e Os Estrangeiros do Trem N (vencedor do Prêmio Jabuti 1998), entre outros livros. Desenvolve projetos narrativos-memorialísticos para empresas e conduz cursos e workshops pelo Brasil sobre Jornalismo & Literatura: sergiovilasboas.com.br

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Elisa Andrade Buzzo nasceu em São Paulo, em 1981. É formada em jornalismo pela Universidade de São Paulo. Estreou na literatura com Se lá no sol (7Letras, 2005), sendo seu último livro de poesias, Vário som (Patuá, 2012), finalista do Prêmio Jabuti 2013 na categoria poesia. Foi coeditora da revista de literatura e artes visuais Mininas. Publicou a antologia de crônicas Reforma na Paulista e um coração pisado (Oitava Rima, 2013) e desde 2006 mantém uma coluna dedicada à crônica no Digestivo Cultural