Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O futuro presidente póstumo

A vida interrompida pelo acaso ou destino travestido de acidente aéreo deu fim ao sonho de ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos, do PSB (Partido Socialista Brasileiro), de sentar na cadeira de presidente do Brasil. No dia 13 de agosto de 2014, um acidente com seu jato particular, que levava o candidato e mais seis assessores, acabou caindo num bairro residencial em Santos, o que causou a morte dos sete a bordo.

Desde então, o jornalismo assinou um contrato implícito de transmissão fúnebre all time, destinando ao falecido político uma visibilidade e relevância que em vida ele não alcançou. Evidentemente, sabemos que ele teve uma trajetória política de respeito, mas não era tão conhecido nacionalmente como ficou após ter morrido de maneira trágica. É impressionante como perder a vida de forma calamitosa é uma condição possível para dar a alguém total reconhecimento perseguido em vida, mas não foi plenamente atingido. É indiscutível que essa circunstância apresenta as premissas de valores-notícia, conceito que indica características que ajudam a perceber e a definir quando um fato deve virar notícia. Neste caso, verificamos a presença dos valores-notícia de seleção como a morte, um valor fundamental para a comunidade jornalística, a notoriedade, isto é, a celebridade ou a importância hierárquica dos indivíduos envolvidos no acontecimento tem valor como notícia e o insólito, a falha, a exemplo dos acidentes. Já os valores-notícia de construção percebidos são a personalização – quanto mais focado em pessoas, maior a oportunidade de a notícia ser vista – e a dramatização – reforço de aspectos de natureza emocional ou conflitual.

Todos estes aspectos estão podem ser vistos na construção da trama de resgate do cidadão e do político Eduardo Campos, oferecendo ao público uma notícia apurada nos moldes do tradicional jornalismo, que ainda permanece forte e determinante apesar da tecnologia que interfere nos processos jornalísticos.

O legado de Campos

No jornalismo, a morte legitima a vida independentemente da índole de quem partiu. A pessoa pública falecida ganha status de personagem de entretenimento, tem a história traçada e contada a partir da sua infância até todos os grupos sociais frequentados pelo falecido. Ficamos sabendo de todos detalhes, até dos irrelevantes e desnecessários. Tudo isso é formatado e colocado nos espaços jornalísticos. As redes sociais também acompanham essa tendência, como mais uma ferramenta para os jornalistas, com a proliferação de notícias, mas também para usuários dispostos a tratar o assunto da forma que julgarem adequada e nisso o jornalismo não tem responsabilidade, a não ser nas páginas dos veículos de comunicação ou nas páginas dos profissionais.

Foi isso o que presenciamos na morte de Eduardo Campos. Em vida não teve a expansão da sua imagem e do seu trabalho como teve nos dias que seguiram a investigação da sua morte até o velório. Acompanhamos um funeral multimídia, o perfil de político, pai, homem, filho, neto de Miguel Arraes, político exilado por 15 anos. Criaram-se estigmas sobre a sua morte através das coincidências numéricas como, por exemplo, ter falecido na mesma data do avô, criando uma esfera simbólica que atribui aura “divinal” e torna a morte um evento de consagração de avô e neto, ultrapassando a esfera política e ingressando no universo familiar. O jornalismo articula essas duas faces com ênfase atingindo a sociedade e desconfigurando um cenário político eleitoral. O jornalismo prestou esse serviço de louvor, edificação e consagração póstuma. Coloca-se em voga o jornalismo participativo e atuante na ascensão de uma personalidade que não vai poder descontruir o que foi edificado e torno dele. A candidata a vice Marina Silva, que antes de se filiar ao PSB foi do PT e do PV, tem uma oportunidade bem mais próxima de ser presidente. Se ela souber aproveitar este patrimônio de comoção e transformá-lo em estratégia política, pode emplacar. O jornalismo está auxiliando ao escrever, reescrever contar e recontar a trajetória de Campos, reforçando a identidade de homem exemplar. Esse homem hoje passa a ser ela. Ela assume a sua posição e passa a sentir os reflexos desse “endeusamento jornalístico e midiático”. O jornalismo e a mídia estão emprestando o seu poder para criar o presidente perfeito que, por uma fatalidade, não teremos mais, não poderá governar o Brasil. Marina Silva tem o momento ideal que precisava. Campos deixa como herança o legado de força, caráter e pai de família, roupagem que ela pode vestir e aproveitar. Se for eleita, teremos à sombra dela o presidente póstumo que precisou sair de cena para transferir a ela a própria credibilidade e, quem sabe, ela ser a próxima presidente.

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Taís Teixeira é jornalista e mestre em Comunicação e Informação