Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O recuo de Marina e o fator religião

A euforia durou pouco. Nem bem os setores mais democráticos da sociedade comemoravam a inclusão do casamento gay no programa de governo do PSB, de Marina Silva, e a candidata já fazia publicar uma errata alegando tratar-se de um erro de revisão e renegando o apoio a tal demanda.

A mudança de posição, e em menos de 24 horas, já seria, por si, um problema de monta, que a desculpa pouco crível e, de qualquer forma, denotadora de grave descuido ou incompetência não desanuvia. Acirrou-o por demais o fato de o recuo ter se dado no esteio do histrionismo e da agressividade com que lideranças evangélicas – Silas Malafaia à frente – reagiram ao programa em seu formato original e da pressão pública e explícita que fizeram no sentido de expurgar a menção a “união civil homossexual” do texto.

Calcanhar de Aquiles

Pegou muito mal para Marina, mesmo porque o imbloglio diz respeito a um dos pontos mais polêmicos de sua candidatura: reforçou o argumento dos que apostam que ela não será capaz de separar suas crenças pessoais das imposições constitucionais de laicidade do Estado. Após uma ascensão fulgurante e em tempo recorde, que a fez empatar com Dilma Rousseff nas projeções para o primeiro turno – e superá-la com ampla margem no segundo – foi como se a aura de encanto em torno da candidata se desfizesse.

A militância GLBT, em sua maioria desapontada após os recuos em série que caracterizaram a administração Dilma – acusada ela também de trocar avanços comportamentais por votos de religiosos – reagiu em peso nas redes sociais, manifestando seu desencanto.

Ameaças diretas

Mas o caso ficaria ainda pior: Malafaia, mesmo após a retificação do programa, continuou a se mostrar insatisfeito, a criticar e, mais grave, a admoestar diretamente a candidata do PSB por meio das redes sociais, em uma série de mensagens. Já no próprio sábado (30/08) em que a errata foi divulgada, publicou a seguinte ameaça através de sua conta no Twitter:

“Se Marina não se posicionar até segunda, na terça será a mais dura e contundente fala que já dei até hoje sobre um candidato a presidente.”

Como se vê, Malafaia utiliza seu poder de forma exibicionista, fazendo uso de um tom intimidatório, incompatível com a civilidade e o republicanismo que se espera da relação pública entre lideranças religiosas e lideranças políticas. Vale-se explicitamente de ameaças, tática inaceitável tanto na democracia quanto no Estado laico, o qual agride impunemente.

Além de tais incompatibilidades cívicas, o desplante com que busca encurralar publicamente a candidata do PSB, sem qualquer contemporização ou discrição, levanta suspeitas acerca de quais suas reais intenções e objetivos políticos.

Impasse

Seja como for, como resultado, Marina Silva encontra-se, neste momento, em uma encruzilhada que pode se mostrar decisiva para seu futuro como candidata: se ceder às pressões e ao ultimato de Malafaia dará mostra inconteste de estar rendida ao poder religioso, o que confirmaria a tese de que sua candidatura é, de fato, uma ameaça à laicidade do Estado.

Para além das dúvidas que suscita pelo protagonismo da religião em sua vida, tal submissão reavivaria, como projeção, um dos espectros mais temíveis de nosso tempo, que de ordinário sempre nos pareceu distante: o pesadelo de um Brasil teocrático e fundamentalista, derivado da confusão entre poder político e religião.

A alternativa mais evidente a Marina – confrontar Malafaia e recusar-se a retroceder ainda mais –, embora não a poupe das críticas e da perda de votos decorrentes de seu primeiro recuo, assinalaria com clareza sua não-sujeição a ditames religiosos e colaboraria para tornar crível o aspecto conjuntural alegado para a errata. Além disso, afirmaria a capacidade – imprescindível a um presidente – de tomar decisões difíceis, que contrariam amplos contingentes, e arcar com as consequências.

Entre o dogma e o avanço

Do ponto de vista estritamente eleitoral, recusar-se a sucumbir ao poder evangélico pode não ser, para Marina, o desastre que se imagina, se colocadas no outro prato da balança as perdas decorrentes da certeza da submissão da eventual presidente aos ditames do poder religioso. No total, os que professam tal fé representam cerca de 22% da população brasileira, mas, além das dissidências várias, há divisões internas, com um número considerável apoiando institucionalmente outros candidatos, notadamente Dilma, que retribui levando a Presidência de um Estado laico à inauguração de um megatemplo erguido por uma das mais ricas e numerosas congregações. Tudo somado, tais fatores fazem com que Marina amealhe, hoje, segundo a média das pesquisas recentes, pouco mais da metade dos votos evangélicos (algo em torno de 12,5% do total de votos).

Com base nos números atuais, a eventual perda da maioria desses votos, como resultado da recusa em se render às pressões de líderes religiosos, não impediria a vitória no primeiro turno, mas tornaria bem mais acirrada a disputa no segundo. Seria, no entanto, ao menos parcialmente compensada eleitoralmente pela empatia que o apoio à causa gay despertaria não apenas nos cidadãos e cidadãs diretamente interessados no tema, mas no volume considerável de votantes que a apoiam, com destaque para uma ampla parcela de eleitores com menos de 25 anos.

O fator mídia

Há, no entanto, um importante diferencial: enquanto os canais mais frequentes do ativismo gay e da expressão de simpatia e de apoio da sociedade ao avanço nas politicas de gênero são os sites, blogs e redes sociais – ou seja, privilegiando a comunicação em rede –, as lideranças evangélicas interessadas em intervir politicamente valem-se de consagrados meios de comunicação de massas. Suas seitas, cujo papel social e cuja capilaridade se deram, em um primeiro momento, no vácuo da ausência de Estado nas periferias e rincões, ganharam as metrópoles e diversificaram socioeconomicamente sua clientela sobretudo através do uso intenso da mídia televisiva e radiofônica, que no Brasil atual atinge o paroxismo.

Assim, tornou-se lugar comum que a televisão e a radiodifusão nacionais – bens públicos, dependentes de concessão estatal– sejam rotineiramente ocupadas por horas e horas por “pastores” e assemelhados, a invadir os lares em seu proselitismo incessante, seus dogmas e eventual intolerância para com outras religiões, sua voragem arrecadatória.

Palanques televisivos

O direito à crença e ao livre exercício dos cultos religiosos, assegurados pelo artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, deve, como tal, ser rigorosamente preservado. Ele pressupõe, porém, o respeito pela laicidade do Estado, da qual deriva e em nome da qual deve sua existência legal, tendo sido tais direitos consagrados pelo legislador em nome dela. Passa, portanto, da hora de acabar com essa conspurcação midiática que afronta a Constituição e restringir os cultos aos púlpitos e a canais comunicantes específicos, exclusivos.

Sua persistência, naturalizada, é mais um fator a reforçar a urgência de se regulamentar a mídia, medida que 12 anos de governo petista ficaram devendo ao país, embora tivessem prometido, em mais de uma eleição, realizá-la.

Isonomia de direitos

De forma similar, passa da hora de colocar um fim na isenção de impostos para igrejas e afins, uma distorção injustificável que só tem feito aumentar o poder econômico e político de “pastores” e líderes religiosos cujos métodos de manipulação da boa-fé popular e de extorsão econômica dos menos favorecidos deveria, há tempos, ser alvo da atenção da Justiça e do Ministério Público.

Há tempos o país assiste, passivo, a um aumento exponencial do poder econômico de certos grupos religiosos. Nas três últimas eleições, ficou evidente o esforço progressivo para transformar tal poder econômico em poder político, sem que ninguém esteja prestando muita atenção às ameaças à laicidade do Estado que tal movimento representa.

Materialismo, religião e politica

Não é este o espaço para debater as ilações entre a difusão da teologia da prosperidade – doutrina que, com sua ênfase na prosperidade material e no imediatismo estilo paradise now, alimenta tantas de tais denominações religiosas –, a ascensão e queda do capitalismo neoliberal e a crise de ideologia e identidade que ora vitima a esquerda, no Brasil e alhures.

Mas, em um texto sobre religião e política, seria lacunar não apontar as similaridades entre tais fatores e o atual quadro político-eleitoral do país, em que não há um candidato presidencial competitivo que ouse confrontar dogmas, sejam estes de mercado, de comportamento ou de religião. Quanto aos últimos, nem Marina, nem Dilma nem Aécio parecem minimamente dispostos a contrariar. Muito pelo contrário.

******

Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF; seu blog