Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Realidade de óculos escuros

Em Portais secretos: acessos arcaicos à internet (1996), Nilton Bonder opina sobre a eficiência e a eficácia da mídia, compartilhando o seguinte ponto de vista: “O computador e tudo que nele está contido – a televisão, o rádio, o telefone etc. – são filtros que nos permitem enxergar além. Não são em si a luz, mas, ao contrário, são como óculos escuros que nos permitem ver a luz sem que esta nos ofusque os olhos. Isto é muito importante: as mídias são mais filtros e mais véus para a realidade absoluta, mas nos permitem, por paradoxal que seja, enxergar mais”.

O posicionamento de Bonder relativiza as intenções de pesquisa inaugurada pelo matemático britânico Alan M. Turing, que culmina na produção dos primeiros computadores; além disso – como cientista, não confiava nos políticos –, responde à barbárie moderna com o projeto utópico do homo communicans, que vive em uma sociedade sem segredos, um ser inteiramente voltado para o social, que só existe através da informação e da troca, em uma sociedade que se tornou transparente, graças às novas máquinas destinadas a comunicar. Porém, como observa Christopher Lash, no livro A cultura do narcisismo (1983), as mídias tornariam irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade, substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável. Assim, nas estratégias discursivas dos meios de comunicação, segundo Marilena Chauí, em Simulacro e poder: uma análise da mídia (2006), “os fatos cederam lugar a declarações de ‘personalidades autorizadas’, que não transmitem informações, mas preferências, as quais se convertem imediatamente em propaganda”. A mídia não-investigativa e a investigativa assim se embaralham, confundindo a percepção cognitiva do público.

O objetivo da investigação midiática é informar ao público as irregularidades públicas ou privadas, no ambiente político, econômico ou social, para que o leitor tenha uma dimensão justa da profundidade dos problemas e esteja perfeitamente preparado para tomar as suas decisões. Os profissionais da mídia devem desenvolver uma persona profissional tal que – a despeito de crenças e valores pessoais, compromissos de classe e de cultura – possam registrar os fatos e as ideias do nosso tempo com honestidade, concedendo à fonte o direito de ser como é e ao público o direito de escolher de que lado ficar.

Anotícia como “um produto à venda”

São características dos agentes midiáticos éticos:

>> ter o compromisso com a verdade;

>> possuir o senso de responsabilidade pelo que é publicado;

>> realizar o julgamento criterioso das implicações dos eventos noticiados;

>> apresentar o espírito “missionário” de educar a sociedade;

>> fazer a distinção entre opinião pública, no seu sentido histórico, e opinião popular, transitória e volátil;

>> desenvolver capacidade de liderança;

>> demonstrar coragem;

>> admitir as próprias limitações;

>> ter equidade, tolerância e senso de justiça;

>> demonstrar preocupação em respeitar e honrar as palavras.

Somado a estes fatores está outro importante requisito profissional destacado por José Cleves em A justiça dos lobos: por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus (2009), a saber: “capacidade para aglutinar e organizar ideias na forma de notícia de conteúdo crítico”. No Mito da Caverna, criado por Platão, o primeiro liberto, aquele que decidiu sair da caverna e conhecer/enfrentar o mundo, utilizou-se de uma postura evidente: a atitude crítica. A rebeldia aliada à vontade de saber mais levou aquele homem a um lugar nunca antes visto: o mundo real. É, portanto, a adoção de tal postura a responsável por nosso avanço intelectual, seja individual ou na vida em sociedade.

Convém, assim, ter ciência de que a palavra crítica tem origem no termo grego krinein, que está ligado à ideia de ir à raiz do problema para tentar entendê-lo, ou seja, realizar uma análise. Krinein significa capacidade de separar para distinguir, capacidade de entender, estudar, examinar e ainda outros sentidos que nos servem construtivamente: capacidade de julgar, decidir, escolher, isso tudo sem pré-juízos, sem preconceitos. A atitude crítica exige, portanto, o trabalho de estudar, de procurar saber.

Defensores da crítica, os agentes midiáticos podem aparecer como legitimadores de ideais revolucionários. Em contrapartida, acompanhamos corriqueiramente a atuação de comunicadores, abraçando um posicionamento favorável ao exercício mandatário de poder. Se, em termos utópicos, deposita-se fé na mídia como “a verdadeira forma da república do pensamento” e “à vista da nação”, conforme sentenciavam, respectivamente, Machado de Assis e Rui Barbosa, os meios de comunicação, em seus bastidores produtivos, concebem a realidade de óculos escuros. São apresentadas ao público, de acordo com Nilton Bonder, versões editadas por filtros seletivos de síntese e análise. Longe de se constituir em espelho do real, o acontecimento, resultado da linha de confecção jornalística, acaba por informar de uma maneira peculiar. Desse modo, a imprensa do esclarecimento público se viu constrangida frente aos apelos da complexa reprodutibilidade tecnológica, marcada pelas normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e objetividade. Não devemos, portanto, aceitar passivamente essa deformação editorial da notícia como “um produto à venda”, conforme alerta Cremilda Medina, pois isso significa acompanhar o esvaziamento do fato jornalístico enquanto norte da opinião pública consciente.

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Marcos Fabrício Lopes da Silvaé jornalista, poeta, doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG e professor da Faculdade JK, no Distrito Federal