Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Texto e discurso

Suponhamos (não invento!) que se assiste a um jornal na tevê e o apresentador dá as últimas informações sobre o conflito entre Israel e a Faixa de Gaza. Como se ele falasse de Marte, o texto é (menciono só o essencial, o que, na verdade, se repete dia após dia): “Os soldados israelenses atacaram… e destruíram X túneis”. “Os radicais (ouextremistas) do Hamas revidaram…”.

A notícia pode ser invertida: “Os radicais atacaram e os soldados revidaram”. O que importa é que as palavras que designam cada grupo são proferidas como se fossem a simples designação indiscutível de uma coisa (assim como se chamam os túneis de ‘túneis’, digamos): soldados e extremistas. 

Acontece que falta simetria nessa fala: se, de um lado, há soldados, do outro também os há (no mínimo, são combatentes). Mas o jornal faz de conta que, de um lado, estão soldados e, do outro, radicais ou extremistas. 

Alguém poderia propor uma fala neutra, que os nomearia simetricamente: de um lado, Israel; de outro, a Faixa de Gaza. De um lado, o exército; do outro, também. Ou, de um lado, radicais; e do outro, também. Por que, afinal, o que é um radical

Acontece que isso não se dá nos discursos reais. Os dicionários podem dar a definição que lhes aprouver, podem ser até heterogêneos e contemplar diversas definições. Mas, num jornal, radical é sempre o outro. 

Função textual da linguagem

Eventualmente, palavras entram numa sequência de frases para fazer um texto, como nesta notícia antiga:

“Acaba de chegar ao Brasil um medicamento contra a rinite. O antiinflamatório em spray (…) diminui sintomas como nariz tampado e coriza. Diferente de outros medicamentos, é aplicado uma vez por dia, e em doses pequenas. Estudos realizados pela (…), laboratório responsável pelo remédio, mostram que ele não apresenta efeitos colaterais, comuns em outros medicamentos, como o sangramento nasal. ‘O produto é indicado para adultos e crianças maiores de 12 anos, mas estuda-se a possibilidade de ele ser usado em crianças pequenas’, diz o alergista (…), de S. Paulo”.

Os termos ‘medicamento’, ‘antiinflamatório’, ‘remédio’ e ‘produto’ são espécies de sinônimos. ‘O antiinflamatório’, na segunda frase, retoma ‘um medicamento’, da primeira. É um exemplo de coesão, cuja matéria-prima é um nome precedido de artigo definido.

Esse tipo de procedimento serve para fazer textos (é a função textual da linguagem, segundo o linguista britânico Michael Halliday). O que quer dizer que existem palavras cuja função básica é organizar sequências para criar uma unidade de sentido, o texto. 

Acontece que não se trata apenas de texto, de uma questão ‘cognitiva’ ou de domínio dos gêneros. A ideologia comparece inevitavelmente nos textos e, concedamos, às vezes nem o autor se dá conta disso. Sua ideologia é tão decisiva que ele pode pensar que está falando do mundo tal como ele é. Não se dá conta de que o mundo dele não é o de todos.

No caso, embora as quatro palavras mencionadas não sejam sinônimas (na verdade, a relação entre elas é de categorias mais amplas com categorias menos amplas ou o inverso (medicamento é um tipo de produto etc.). Aceitemos que, em casos assim, não se revela uma ideologia explícita. 

No entanto, se alguém escrever (ou disser): “O Hamas… Este grupo extremista/ radical/ terrorista”, a ideologia está exposta à luz do dia.

Guerra de palavras

A propósito do conflito, que ainda não acabou (aliás, uma amiga perguntou: “É um conflito ou uma guerra?”, distinção relevante, porque há ‘crimes de guerra’, definidos em tratados internacionais, mas não ‘crimes de conflito’ com estatuto similar), as discussões que a mídia veiculou são interessantes. Ao lado da terrível guerra (vou chamar assim), que matou muita gente, houve uma guerra de palavras, ora mais, ora menos declarada. 

O exemplo do começo da coluna parece guerra de guerrilha: a pessoa faz de conta que não quer nada com nada, apenas quer contar os fatos, mas os conta de forma tal que ‘mata gente’ de um lado e não do outro.

Mas houve também guerras explícitas, como, por exemplo, entre quem defendeu que ‘antissionismo’ e ‘antissemitismo’ são a mesma coisa e quem discordou dessa equivalência (explicando simplificadamente: para alguns, combater a atual política de Estado de Israel implica antissemitismo, uma atitude de tipo racista; para outros, significa apenas combater a atual política de Estado de Israel, que pode mudar etc.).

Em outros momentos, e a propósito de temas completamente diferentes, a mesma guerra de palavras já deu as caras. Uma pessoa escreve um texto ‘pensando’ apenas em referir-se a coisas, conceitos ou pessoas, mas outros veem na escolha das palavras uma opção ideológica.

Há não muito tempo, um colunista escreveu sobre ‘homossexualismo’ e recebeu críticas, porque esse termo implicaria preconceito; o termo correto deveria ser ‘homossexualidade’. 

De novo: pode parecer apenas uma guerra de palavras, e, às vezes, é mesmo. Mas isso não significa que seja uma guerra menos mortal, ou grave, ou agressiva. Quem diz que se trata apenas de questão semântica não tem ideia do que isso significa.

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas