Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sou branco, posso avaliar racismo?

Crítica de televisão do “New York Times” há mais de uma década, Alessandra Stanley já viveu algumas vezes a experiência de passar de estilingue a vidraça por conta de textos polêmicos ou erros que cometeu. Nunca, porém, provocou tamanho barulho quanto nesta semana.

Em um texto sobre Shonda Rhimes, responsável pela criação de duas séries de muito sucesso, “Grey’s Anatomy” e “Scandal”, a crítica do principal jornal americano recorreu a um estereótipo racista para classificá-la (“angry black woman”), além de ter feito observações consideradas condescendentes sobre a produtora negra.

Comentando o caso em seu blog, a “public editor” (ombudsman) do jornal, Margaret Sullivan, observou que, nos mais de dois anos em que ocupa o cargo, poucos assuntos provocaram tantas e tão apaixonadas reações quanto o texto de Stanley.

Ouvida por Sullivan, a crítica disse que foi mal compreendida e que o texto tinha a intenção de elogiar Rhimes. A menção ao estereótipo racista, disse, foi feita com o objetivo de mostrar como a produtora o superou.

Não satisfeita com a resposta, a “public editor” cobrou explicações da editora de cultura do “New York Times”, que defendeu o texto, acrescentando que ele foi lido por três jornalistas antes de ser publicado.

Sullivan recorreu, então, a Dean Baquet, editor-executivo do jornal. Trata-se do primeiro jornalista negro a ocupar o principal cargo do “New York Times”. Baquet também considera que Alessandra Stanley foi mal compreendida, mas enxerga um problema no perfil racial dos críticos de cultura do jornal –dos 20 que atuam hoje, 18 são brancos e não há nenhum negro.

Sem preconceitos

Este caso, que certamente terá outros desdobramentos, ocorre ao mesmo tempo em que, no Brasil, acontece a discussão de se um seriado da Globo, “Sexo e as Negas”, tem conteúdo racista. Muitas das críticas se referem ao fato de Miguel Falabella, criador do programa, ser branco e não conhecer a realidade dos negros que retrata.

Após assistir ao primeiro episódio, observei em meu blog no UOL que não vi racismo no programa. O comentário provocou uma mesma reação em alguns leitores, segundo os quais eu não tenho condições de fazer esta avaliação pelo fato de ser branco.

Entendo a lógica da observação, e concordo que um crítico de TV negro pode enxergar de forma diferente a série. Mas limitar a avaliação de programas dessa forma não apenas contraria a natureza do trabalho jornalístico como significa uma forma de limitar o debate e a troca de ideias.

Muito da indignação que a série causou deve-se ao título. O uso da palavra “negas”, de fato, causa um incômodo. Não dei muita importância a isso quando a polêmica se instalou, mas hoje, após ver dois episódios, vejo que foi um erro grave da Globo.

O título, no fundo, desvia a atenção do espectador. “Sexo e as Negas” acompanha a trajetória de quatro mulheres negras da periferia do Rio colocando em planos iguais a busca delas por diversão e prazer e a luta pela sobrevivência.

O programa não faz a denúncia do racismo ou do sexismo com a eloquência que os militantes da igualdade racial e da discriminação sexual gostariam. Mas está longe de endossar estes preconceitos. Ao contrário, insisto. Por meio da comédia, “Sexo e as Negas” consegue colocar o dedo na ferida.

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo