Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Divulgação de pesquisas e a qualidade da democracia

Uma das ocorrências significativas neste momento é o déficit de credibilidade com que os institutos de pesquisa saíram do primeiro turno das eleições brasileiras, cujos números, por razões as mais diversas, não conseguiram expressar com a devida precisão os resultados das decisões que os eleitores tomaram nas urnas de domingo (5/10).

Num país como o Brasil, esse tipo de ocorrência é mais do que preocupante. A democracia brasileira ainda não é um exemplo de autonomia das instituições, nem sabe ainda direito conviver com as contradições próprias do exercício pleno da liberdade. No primeiro sentido, há institutos, tanto quanto há jornais e emissoras, que se entregam à influência e às verbas dos grupos políticos, fazendo a informação tangenciar conforme os interesses que não raro contrariam os da população e, por conseguinte, do eleitorado. E, no segundo sentido, a reação dos insatisfeitos, seja com a mídia, seja com a pesquisa – nem sempre pela falta de precisão das informações divulgadas, mas quase sempre porque suas opções políticas não se veem atendidas –, costuma ser a invectiva: é preciso controlar, é preciso proibir. E dá-lhe reivindicação por legislação restritiva.

O temor, sempre presente, é o de que a informação divulgada, presumida genericamente como enganosa sempre, engane o eleitor. E, enganado, o eleitor tome a decisão errada. Para que isso não aconteça, é desejável que o eleitor seja protegido da informação falsa e, assim, possa tomar sua decisão com autonomia. O diagnóstico é razoável. Mas, a solução é a pior de todas. Explico por quê.

Eleitor esconde a preferência

É inquestionável que a melhor informação é a que for mais correta. Para isso, tanto institutos quanto o jornalismo precisam com urgência repensar seus métodos e, sobretudo, seu modo de envolvimento com as campanhas eleitorais.

Candidatos e marqueteiros de todos os lados não raro propõem contratação a institutos sob a condição de que mostrem resultados que os beneficiem, por razões de motivação de campanha e influência nas negociações políticas – aliados e financiadores prováveis só abrem os respectivos bolsos se o candidato mostrar viabilidade eleitoral, e isso é o que a pesquisa pode oferecer. Como esse tipo de “serviço” faz o preço aumentar, a tentação dos donos dos institutos não é pequena – já ouvi de mais de um deles coisas como “eu só deixo mexer dentro da margem de erro”, como se isso o livrasse do equívoco ético.

Da mesma forma, há jornais e jornalistas, tanto no plano nacional quanto nos regionais, que são levados a tangenciar as políticas editoriais às preferências das verbas governamentais. E não parece tão raro assim o conluio atingir ambos os setores: a mídia e a atividade de pesquisa. O problema, com certeza, é mais complexo. Até porque há institutos sérios, há pesquisadores que consideram que a reputação vale mais do que o dinheiro passageiro de um candidato provavelmente inviável (se não o fosse, não faria tanta questão da alteração nos números). Conheço institutos assim que, comprometidos com uma campanha específica, deixam de divulgar resultados, simplesmente para não se obrigarem nem a divulgar resultados falsos, nem resultados que desfavorecem seus contratantes. É o que é correto fazer? Não sei, mas reconheço que isso é melhor do que falsear dados de publicação.

Mas o problema é ainda mais complexo. Os institutos que exercem a atividade a sério têm enfrentado graves problemas metodológicos, que também precisam ser discutidos. A recente adoção da pesquisa telefônica, que barateou enormemente o custo da coleta de dados, ignora dificuldades originárias da perda do contato pessoal para a obtenção da informação. A sanha pela rapidez, num mundo em que a própria eleição ocorre à velocidade da luz pelas estradas digitais da informática, faz com que os processos ocorram sem que a qualidade possa ser submetida à análise. E tem sido crescente no Brasil a suspeita de que o eleitor, abordado por pesquisadores nessas condições, esconde ou mente sua preferência. Estes não são problemas éticos: são desafios metodológicos, com os quais os cálculos estatísticos não contaram, e que os especialistas têm que enfrentar.

A quem beneficia o silenciamento?

Há, portanto, problemas, e eles vieram fortemente a público após o primeiro turno, trazendo preocupações justificáveis. Não é isso, contudo, o que me preocupa. Preocupa-me o remédio que muitos propõem: controlar e proibir.

Sou pesquisador – não fiz nenhuma pesquisa de intenção de votos nestas eleições –, professor de Metodologia da Pesquisa nas duas maiores universidades de meu estado e pertenço ao meio científico, onde metodologia da pesquisa é fundamento da própria sobrevivência profissional e onde esse assunto é debatido com a sofisticação filosófica da epistemologia da ciência. Onde buscamos relacionar método e valor de verdade, veracidade, inteligibilidade e retidão ética. E onde faz parte do ofício identificar os modos em que isso falha – e falha muito e sempre –, para que se possa constituir a ciência naquilo que ela difere de todas as demais formas de conhecimento: a de uma atividade que se reconstrói o tempo todo a partir de seus próprios erros, racionalizando-os e buscando saídas melhores, embora não menos polêmicas.

É com a preocupação do cientista que busco ser, que escrevo este artigo. Os erros e até as manipulações das pesquisas eleitorais são, sim, justa preocupação. Contudo, chamo a atenção dos que me lerem para a razão seguinte: proibir é a pior solução. Em democracia há pouca coisa pior do que o silenciamento da informação, ainda que aparentemente falsa.

Todo silenciamento beneficia os que agem para silenciar. As restrições da legislação eleitoral sobre a comunicação das campanhas, por exemplo, têm claramente beneficiado os políticos dotados de poder. Ninguém consegue construir uma candidatura estadualizada sem ocupar um cargo que lhe gere mídia espontânea, ou sem cometer crime eleitoral, fazendo propaganda extemporânea, ainda que disfarçada. Candidatos desconhecidos não têm outra alternativa senão perder eleições em sequência, expondo suas propostas em dois a três meses, a cada quatro anos, na esperança de se tornarem conhecidos e viáveis eleitoralmente um dia. A quem beneficia o silenciamento legal?

A exclusão da população

Agora, fala-se em proibir a divulgação de pesquisas eleitorais. Evidentemente, a proibição atingiria a população e somente ela. Ninguém cogita em proibir as pesquisas internas, que informam políticos e marqueteiros de forma quantitativa e qualitativa as minúcias do comportamento e das opiniões do eleitorado e lhes dão condições de estruturar estratégias tão precisas, quanto lhes é possível à estrutura e à competência. Faço a mesma pergunta: a quem isso beneficia? À população, que ficará sem informação sobre ela própria?

Pergunto-me como cidadão: por que as coordenações de campanha e os políticos podem ter e considerar informações sobre nós numa campanha eleitoral e nós mesmos não podemos ter acesso a elas? De que democracia é essa de que falamos?

Por isso considero que proibir é o pior remédio. A atividade de pesquisa é séria e as metodologias das ciências sociais já deram contribuições inestimáveis suficientes ao fortalecimento da democracia e à busca por uma sociedade melhor. O que precisamos é aperfeiçoar, qualificar e exigir ética. Que se convoquem os institutos de pesquisa e exijam deles que façam melhor do que têm feito. Que se critiquem seus resultados e seus métodos, que se soergam critérios que devolvam à atividade de pesquisa a dignidade que ela sem dúvida merece. Pesquisa ruim se resolve com pesquisa boa. Pesquisa se contesta com mais e melhor pesquisa. Fora disso, é apenas obscurantismo, a partir da crença estapafúrdia de que a ignorância de todos (exceto da elite política e técnica que a assessora) poderia produzir algo de positivo.

Paremos de querer tutelar o eleitor: ele sabe se defender sozinho e, se não sabe, precisa aprender, pois dele deve ser a responsabilidade, já que é ele quem paga pelas consequências de suas decisões de voto.

E, para aprender, não há outro caminho: democracia se aprende com a experiência da própria democracia. Democracia só se consolida com mais liberdade e mais comunicação. Sem liberdade e sem comunicação, a única coisa que se opera é a exclusão da população dos processos de conhecimento e decisão. E esse é o pior dos mundos, num Brasil de democratização recente e instituições ainda em consolidação.

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Luiz Signates é professor de Metodologia da Pesquisa e pós-doutor em Epistemologia da Comunicação