Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Histórias para exorcizar o colaboracionismo

A obra de Patrick Modiano tem duas principais características: em primeiro lugar, trata-se de romances que misturam elementos autobiográficos e ficcionais, o que levou críticos a considerar sua obra autoficcional; a outra seria o trabalho de memória em relação aos anos da ocupação.

Ele trabalha obsessivamente sobre o período da guerra, quando os judeus da França foram perseguidos e enviados aos campos da morte. Seu pai era judeu de origem estrangeira (nascido em Salônica, Grécia) e recusou-se a se registrar como judeu, como exigia a lei.

Pelo que sugere o autor em seus livros, o pai parece ter exercido atividades comprometedoras no mercado negro e na colaboração a fim de sobreviver na Paris ocupada. Como os dois tiveram pouco contato, e como o pai nunca falou sobre o período da guerra, ficou uma lacuna, uma memória ausente. O próprio pai teria sido um homem traumatizado, que tratou o filho com hostilidade.

Modiano, como outros escritores e artistas que nasceram durante ou logo após a guerra, cujas famílias sofreram algum trauma, explora em suas obras uma memória que não é a dele, é uma memória rasurada, obscurecida pelos não ditos e pelos segredos de família. Fala-se, neste caso, de pós-memória, porque essa geração volta incessantemente a acontecimentos que não presenciaram.

Fora de catálogo

No romance “Dora Bruder”, por exemplo, ele procura escrever a história de uma jovem enviada ao campo de concentração quando os arquivos sobre sua existência são mínimos. É como se ele tentasse dar uma dignidade aos mortos que foram tratados como não homens.

A contribuição de Modiano à reflexão sobre o período da ocupação foi importante porque a França demorou a elaborar o trauma da colaboração. Seu romance “La Place de l’Etoile”, de 1968, foi um dos primeiros a tematizar a ocupação. O filme “Lacombe Lucien” de Louis Malle (1974), a partir de roteiro de Modiano, provocou um choque na França porque era difícil admitir como um jovem se torna colaboracionista sem nenhuma razão ideológica, só mesmo para se dar bem.

Para os brasileiros que não leem francês, a concessão do Prêmio Nobel a Patrick Modiano será muito bem vinda, já que estimulará a tradução de seus romances, assim como aconteceu com Le Clézio que ganhou o Nobel há seis anos. Atualmente, os poucos romances de Modiano publicados no Brasil estão fora de catálogo e só podem ser encontrados nos sebos.

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Eurídice Figueiredo é professora da pós-graduação em Estudos de Literatura da UFF (Universidade Federal Fluminense)