Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Daniela Nogueira

Uma história contada (e depois, recontada) há alguns dias no caderno Esportes ajuda a mostrar o quanto nós, jornalistas, somos afeitos à emoção. Em muitos casos, até mais do que à razão – tanto que, por vezes, falhamos na apuração dos fatos.

Na edição de 9/10, uma quinta-feira, o caderno publicou, na página 3, a matéria “Acabou-se. O que era doce”. Era o caso de três meninos, de 11, 13 e 16 anos de idade, que subiam o muro da casa da avó para assistir aos treinos do Fortaleza, no Pici. O texto contava a lamentação dos garotos, porque a avó se mudaria no dia seguinte e, consequentemente, eles deixariam de ver os treinos do clube daquele lugar privilegiado.

Aquele momento da pauta era, então, “dia de despedidas no Pici”, já que seria o último treino que os meninos veriam a partir do muro da avó, dona Helena. São informações da matéria, que acrescentava um tom sorumbático: “Sentados no muro, eles teceram o sonho meses a fio”.

Veja bem…

Bonitinha, mesmo um tanto triste. Mas não era bem assim. Na edição do dia seguinte, 10/10, outra matéria sobre o assunto foi publicada em Esportes: “Esperteza. Sabe de nada, inocente!”, na página 2. Desta vez, as informações verídicas: a dona da casa que cedia o muro para os meninos verem os treinos não era avó deles. Ela não estava de mudança. Aquele não seria, portanto, o último dia em que eles veriam os treinos do Fortaleza, a partir do muro da casa. A história toda foi inventada pelos garotos para sensibilizar o time e fazer com que eles ganhassem camisas do clube.

Um dia depois, eles procuraram o repórter para contar a verdade, após terem sido convencidos pelos donos da casa a reparar a mentira. Caso contrário, não cederiam mais o muro como camarote. Em tempo: os meninos não conseguiram as camisas do clube. Mas foram presenteados com meiões de dois jogadores.

Esperteza?

Como escrevi na crítica interna que envio à Redação e aos demais setores do jornal, a impressão é que o jornal encarou a história como uma grande piada, até na escolha do título que deu à segunda matéria, com a cartola “Esperteza”. Foi mérito dos três adolescentes ganhar o espaço nobre de uma matéria principal, com foto, em um dos maiores jornais do Estado? Ou foi falha do jornal no processo de apuração, verificação e checagem?

Não coloco em questão a atitude ou o sonho dos meninos, de estar mais perto do time querido e conseguir uma lembrança dos jogadores. Questiono nossa ingenuidade em nos deixarmos convencer pela história dos três garotos, sem tentar ouvir mais ninguém, nem a suposta avó, dona da casa.

Já pensou se a moda pega e muitos passam a inventar histórias, enganando a imprensa, como forma de os fins justificarem os meios?

O que diz a Redação

Editora do caderno Esportes, a jornalista Ana Flávia Gomes comentou o fato: “A editoria entende que trazer uma matéria no dia seguinte com as devidas correções de informação e os desdobramentos da história eram fundamentais para tratar a questão com honestidade e respeito aos leitores. Reconhecemos que houve erro de apuração na primeira matéria. Um ‘Erramos’ não seria suficiente para solucionar a questão.

Não tratamos o erro ‘como uma grande piada’. Expondo nossa falha e providenciando a correção no mesmo tom, conseguimos manter a perspectiva de trazer personagens para dentro do caderno. O risco do ‘se a moda pega’ é algo constante para quem pretende contar histórias, apesar dos cuidados de checagem sempre muito necessários.”

Desconfiar

Sim, o jornal fez o que tinha mesmo de fazer. Assumiu que fora enganado. Felizmente, a mentira não se agigantou nem prejudicou ninguém. Mas não estamos livres disso. Contamos uma história que não existia. Falhamos em etapas básicas, como apuração e checagem. Não é dessa forma que podemos nos vangloriar de que fazemos jornalismo. Jornalista foi feito para desconfiar – e a experiência nos ensina isso.

Falhamos em etapas básicas, como apuração e checagem. Não é dessa forma que podemos nos vangloriar de que fazemos jornalismo.Jornalista foi feito para desconfiar.

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Daniela Nogueira é ombudsman do jornalO Povo