Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A última volta do parafuso

Há razões de sobra para crer que tudo na vida é cíclico, que a História se repete e que povos sem memória estão condenados a repetir sempre os mesmos erros. Vai ver por causa disto o Brasil não tira o pé da lama, não sai do marasmo de um enredo que reflete a leniência e submissão da sociedade com mazelas e atribulações que se perpetuam na proporção da pusilanimidade de governantes e instituições – salvo raras e honrosas exceções –, entre as quais uma imprensa sem credibilidade para por ordem na casa.

Não obstante a fama de terra boa e hospitaleira, nosso decantado paraíso artificial no fundo não passa de um projeto mal acabado e mal ajambrado de país, fustigado por males crônicos engendrados por um poderoso círculo vicioso de ilicitudes e delitos, entranhado nas esferas do poder, na administração pública, nas redações. O que em meio ao arremedo de democracia vigente, no que tange à sordidez da classe política e do despreparo da população para o sistema eletivo – a consagração nas urnas de aberrações como Tiririca e a própria reeleição de Dilma, não obstante os escândalos a rodo, falam por si –, explicam a sina de não só repetir os mesmos erros, mas de absorvê-los, conviver com eles.

A ponto de estabelecer uma espécie de primado da malandragem, de culto à ilicitude, à roubalheira explícita e institucionalizada, patrocinado por aqueles que deveriam ser os guardiões da coisa pública e da moralidade. Só que não. Ao invés disso, um longo e antigo legado de esquemas e cartéis se desenvolveu em torno das gordas verbas e recursos da União. De um lado, diretores e altos funcionários, devidamente instruídos e imbuídos da confiança de escalões superiores – leia-se, políticos de todas as matizes –, de outro, fornecedores, prestadores de serviço e, sobretudo, empreiteiras de todos os calados, unidos num grande conluio de propinas e desvios de verbas, que finalmente veio à tona.

Nada, de qualquer forma, que já não se soubesse ou se intuísse, a começar pelos próprios constantes embargos do TCU, não sem a chiadeira de governantes e políticos, os maiores interessados na pronta execução das obras. Queda de braço que em dado momento chegou a levar o ex-presidente Lula, no auge da irritação, a acusar os auditores de boicote e motivação política, tal a quantidade de obras interditadas por conta das mais diversas irregularidades – da falta de licitações à velha e recorrente prática de preços superestimados.

Raciocínios tortuosos

Tão velha e rotineira que não surpreende que, apesar do caráter doloso e execrável da prática, sua inevitabilidade acabe figurando como pièce de rèsistance da defesa dos réus. Segundo um dos advogados, cujo nome nem vale a pena citar, nenhum tijolo é colocado nas obras públicas sem passar pelos tais esquemas, ou seja, sem acertos prévios, o que sempre foi não só tolerado como considerado vital para abastecer campanhas eleitorais cada vez mais milionárias. Só faltou dizer que se as investigações forem levadas a ferro e fogo, haja corda para tanto pescoço.

Deixou claro, enfim, que sempre foi de conhecimento geral no meio que para se conseguir contratos com as estatais e órgãos do governo, somente se sujeitando ao fatiamento do bolo, ao esquema de propinas pré-estabelecido entre as partes. Confraria com status de clube, e cujas ações, por incrível que pareça, alguns ainda tentam justificar, amenizar mediante raciocínios tortuosos e alusões a outras épocas, outros governos anteriores ao ciclo petista.

Houve até quem escrevesse, jocosamente, que o país e a própria grande imprensa, que agora se esbalda com o escândalo, talvez ainda tenham que se desculpar com a quadrilha, complementando a tese da defesa de que ao invés de réus, as empreiteiras e empresas flagradas nas investigações da PF seriam vítimas da chantagem e verdadeiras extorsões impostas pelos diretores e operadores dos esquemas. Durma-se com um barulho desses.

Como se não bastasse o show de desfaçatez, como se não fosse suficiente o volume de provas insofismáveis, os detalhes, o montante sem similar no mundo das fraudes – algo em torno de 10 bilhões de reais só no caso da Petrobras –, a história a cada dia fica mais mórbida, com as patéticas versões urdidas por manjados paus mandados da imprensa engajada no sentido de desviar o foco, de vender o peixe de que as acusações estariam sendo distorcidas. Expediente infalível compartilhado entre áulicos e zelosos escribas sempre prontos a apontar o uso político das denúncias e ações da justiça, como se o vazamento dos depoimentos prestados sob o acordo de deleção premiada desqualificasse as investigações, mitigasse os delitos cometidos.

Ora, se lutar com palavras é a luta mais vã, como escreveu nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, o que dizer quando as palavras são ambíguas e se prestam a causas dúbias, em função de interesses político-partidários que se sobrepõem aos valores éticos e morais que devem nortear o jornalismo. No caso da imprensa, como já se disse tantas vezes, o desvirtuamento de seu papel – acentuado a partir da chegada do PT ao poder – vem ganhando contornos ainda mais desabonadores na medida em que a militância tornou-se mais explícita e exacerbada. Desabonador para não dizer desmoralizante, em vista da defesa unilateral e facciosa de posições e pontos de vista muitas vezes descompromissados com a verdade dos fatos.

Síndrome de avestruz

Que veículos e profissionais da imprensa tenham lá suas preferências, e até mesmo se coloquem a seu serviço, não chega a ser nenhum absurdo, nem depõe contra a integridade de ninguém. Aliás, não são poucos os que advogam a tese de que a imprensa deveria obrigatoriamente assumir suas preferências e posições, em nome da transparência e coerência que se espera do trabalho jornalístico. O problema é que tal postura implica compactuar com ideias e compromissos que nem sempre são levados a bom termo, muito pelo contrário. Com a tal vocação delituosa da classe política mais latente do que nunca, apoios e alianças incondicionais são riscos que uma imprensa que se preze não pode correr.

Como acontece agora, com a colossal roubalheira promovida sob a égide petista, que vem figurando na imprensa internacional como o maior assalto aos cofres públicos de um país em todos os tempos. Mas que nem por isso inibe e muito menos inspira qualquer rasgo de autocrítica, já que a dignidade de um mea culpa positivamente não é para qualquer um, e nunca fez o gênero da imprensa chapa-branca. Amostra cabal desta, digamos, síndrome de avestruz, pode ser encontrada aqui mesmo neste conceituado site, nos artigos enviesados de seu principal editorialista, que embora não chegue ao ponto de negar a existência do colossal propinoduto nas entranhas da Petrobrás, tem sido um bombeiro incansável a serviço das hostes petistas.

Mas como negar, justificar, minimizar delitos esmiuçados de maneira tão detalhada e irrefutável? Como não se envergonhar, não se indignar, clamar por justiça, diante de uma roubalheira tão grandiosa e descarada, com a participação, segundo informações preliminares, de mais de uma centena de parlamentares, e quiçá com o conhecimento e anuência da própria presidência do país?

De qualquer forma, seria ingênuo achar que essa gente possa entregar os pontos assim tão facilmente. Enquanto os gatunos se cercam de causídicos descolados, que conhecem muito bem o caminho das pedras para amenizar as penas e perdas – e em último caso, aderindo à deleção premiada –, os verdadeiros advogados do diabo, imiscuídos na imprensa, se nivelam à escória que os inspira e os recompensa, na busca inútil por desculpas e atenuantes para delitos tão graves e abrangente.

Salve geral

Seria cômico se não fosse trágico o esforço deste redivivo exército de Brancaleone no afã de atenuar os fatos e minimizar as consequências de um escândalo que, em qualquer país civilizado, ou mais politizado, iria bem além de meras prisões preventivas, que logo serão relaxadas ou cumpridas em luxuosos domicílios, como já acontece com os condenados do Mensalão. Na falta de argumentos plausíveis, o salve geral é apelar para a velha acusação de exagero e abuso de poder por parte do Ministério Público e da Polícia Federal. Passando, obviamente, pelo juiz paranaense Sérgio Moro, responsável pelo julgamento da já célebre operação Lava a Jato e, por conta disso, já com seu lugar garantido na história contemporânea do país como o magistrado que pela primeira vez teve o peito de botar atrás das grades uma penca de poderosos até então intocáveis e inatingíveis.

Outra linha não menos risível, para não dizer infame, são as alusões a antecedentes que possam, ao mesmo tempo, contextualizar a bandalheira na Petrobras como apenas mais um capítulo no secular histórico de corrupção pública no país e desencorajar medidas e críticas mais duras mediante ameaças de eventuais processos por danos morais. Como a lembrança reiterada aqui mesmo pelo já mencionado articulista à milionária ação movida por esta mesma Petrobras contra Paulo Francis, na década de 1990, pela mesma acusação de roubalheira desvendada agora. Ação à época ajuizada em 100 milhões de dólares na corte de Nova York, e que teria sido determinante para o enfarte que o matou, poucos meses depois.

Sem falar no artigo do empresário Ricardo Semler, pinçado na Folha de S.Paulo, cujo grotesco título – “Nunca se roubou tão pouco” – cai como uma luva para o articulista esgrimir a tese de que a atual roubalheira está sendo superestimada pela imprensa, por força de interesses político-partidários. De tão obstinado, engole a seco o raciocínio grosseiro de Semler ao avaliar que na década de 80 se roubava muito mais, cerca de 5% do PIB em propinas, segundo fonte que não menciona, chutando que cerca de 1 trilhão de reais foram subtraídos na época em esquemas fraudulentos. O que, segundo ele, tornam uma ninharia os 0,8% surrupiados hoje em dia.

A rosca espanou

Enfim, o tipo do papo sem sentido, pois se a ideia era esvaziar o impacto e a indignação com a revelação da objeta rapinagem na maior empresa do país, já que chama de hipócritas as manifestações populares contra a máfia enfim desbaratada, melhor ter ficado calado e respeitar os que não têm sangue de barata.

Bem mais feliz foi a analogia encontrada pelo sagaz colunista Josias de Souza, da Folha de S.Paulo online, ao comparar as propostas paliativas mencionadas pela presidente Dilma e pela presidente da Petrobrás, Graça Foster – entre as quais, a criação de uma diretoria especial para fiscalizar as contas da empresa –, à ordem dada pelo comandante do Titanic para que a orquestra continuasse tocando, para distrair os passageiros, enquanto o barco afundava.

Em suma, o governo petista pode até se safar meio ileso desta história, já que a oposição e a própria imprensa hegemônica não parecem dispostos a levar a coisa às ultimas consequências, mesmo porque o eventual agravamento da atual crise não interessa a ninguém – e neste ponto Semler dá uma dentro. Sem falar que a mídia depende muito da publicidade oficial e das próprias empreiteiras, daí, ao contrário do que diz a banda governista, estar fazendo bem menos barulho do que seria lícito esperar. Mas, não obstante todo esse cavalo de batalha, o fato é que a exemplo do vexame histórico da seleção de Felipão, a colossal rapinagem patrocinada ou tolerada sob a égide petista jamais será esquecida.

É sob prisma e estigma que daqui em diante, o petismo e seus aliados não menos inescrupulosos serão vistos e vigiados, quer queiram ou não os tais tocadores de tuba instados a distrair a plateia. O caldo azedou, senhores. Não há mais argumentos que colem. A última volta do parafuso foi dada e a rosca espanou.

Moral da história: se não aprendermos nada desta vez, no sentido de dar um basta nesse círculo vicioso, o último que apague a luz.

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Ivan Berger é jornalista