Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Vera Guimarães Martins

“Brasileiro vive mais, e aposentadoria cai.” Foi assim, com o viés que lhe é peculiar, que este jornal tratou a notícia sobre o aumento da expectativa de vida nacional, divulgada na segunda-feira (1º). A boa nova veio do IBGE: de 2012 para 2013, o brasileiro ganhou mais três meses e 25 dias de vida, e sua expectativa ao nascer passou de 74,6 para 74,9 anos. No impresso, o assunto foi parar em economia com um apêndice verdadeiro, mas negativo: viver mais é igual a perder, em média, 0,65% na aposentadoria.

O cálculo faz parte da Tábua de Mortalidade, estudo anual que norteia os benefícios pagos pelo INSS. Ela é sempre uma avaliação interessante, porque segue de perto os avanços demográficos e fornece uma profusão de dados, permitindo recortes por faixa etária, gênero, Estados e regiões do país.

O espaço ideal para estudos do gênero é o caderno “Cotidiano”, que cobre rotineiramente questões como longevidade, mortalidade infantil ou de idosos e os efeitos da violência ou das políticas de saúde na vida da população. Como tem implicações previdenciárias, o levantamento também cabe em “Mercado”, mas numa ótica mais estreita, a dos benefícios pagos pelo INSS.

A decisão de onde publicar depende (ou deveria depender) do dado que provoca maior impacto noticioso. No caso, o leitor pode julgar por si: o que é mais significativo, um aumento de quase quatro meses na expectativa de vida do país ou um recuo de 0,65% no valor das aposentadorias? (Para dar concretude ao índice: o segurado que ganharia R$ 809 vai receber R$ 802 mensais, num dos exemplos dados no jornal).

Ao leitor pouco importa onde sai uma notícia, desde que ela traga as informações mais relevantes –no caso, as causas e consequências das mudanças demográficas por atrás dos números. No caderno de economia, o foco ficou concentrado no fator previdenciário. Um texto pequeno abordou superficialmente a evolução do país desde 1980, sem detalhar dados que mostram, por exemplo, que os maiores progressos ocorreram em Estados do Nordeste.

Além de subtrair informações, a opção pelo viés econômico acabou reforçando a fama de que a Folha, tal como Hardy, a hiena pessimista do desenho animado, só consegue enxergar o lado ruim da vida.

Bote na conta do acidente de percurso. A Secretaria de Redação concorda que foi um erro de avaliação.

Imagem é tudo

Não é novidade que jornais e jornalistas gostam de qualquer notícia que possa ser “traduzida” em percentuais ou rankings. A preferência parte da crença de que algum grau de mensuração torna o conteúdo mais confiável e lhe confere uma aura de precisão ou seriedade. Se, em levantamentos extensivos como o do IBGE, isso é verdadeiro, em boa parte das vezes, é pura balela.

Os jornais publicaram um exemplo claro na quarta (3): levantamento da ONG Transparência Internacional colocou o país em 69º lugar no ranking que mede a percepção de corrupção em 175 nações. Quanto mais alto, mais corrupto.

Segundo a ONG, em 2013, o Brasil “recuperou” três posições e ficou empatado com outros seis países, entre os quais a Suazilândia, uma monarquia da África onde os partidos políticos são proibidos, e o rei polígamo escolhe novas esposas em cerimônias onde virgens dançam com seios nus. Mais: o Brasil aparece seis posições atrás de Cuba, cujo grau de transparência é conhecido.

Longe de mim menosprezar a expertise tupiniquim em matéria de corrupção (olha o noticiário aí, gente!), mas dá para levar a sério um ranking com esse resultado?

A impressão piora quando se conhece sua metodologia, que este jornal descreveu como “dados obtidos por 12 instituições internacionais”. O levantamento se baseia na percepção de pessoas entrevistadas nessas instituições e na sociedade civil. Não há dados, mas opiniões.

A Secretaria de Redação considera que a publicação se justifica porque o levantamento afeta a imagem do país no exterior, mas reconhece que faltou explicar a metodologia e apontar a fragilidade do estudo.

******

Vera Guimarães Martins é ombudsman daFolha de S. Paulo