Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A cobra não engoliu o homem

Mais de seis décadas depois da estreia de “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), é interessante ver como várias das “lições” de Chuck Tatum, o jornalista decadente e picareta vivido por Kirk Douglas, permanecem atuais.

Fracassado em Nova York, ele vai parar em Albuquerque, no Novo México, onde ninguém conhece a sua má reputação. Diante do dono do pequeno jornal da cidade, Tatum explica o que faz dele um grande profissional: “Sou capaz de lidar com grandes e pequenas notícias. E se não há notícias, eu saio e mordo um cachorro”.

Trata-se de uma referência à mais sintética e duradoura definição sobre o que é notícia, a saber: se um cachorro morde um homem, isso não é notícia, mas se um homem morde um cachorro, isso é notícia.

Mais uma vez me lembrei de Tatum e do filme de Billy Wilder ao acompanhar a repercussão mundial de um programa especial do canal Discovery, chamado “Eaten Alive” –”comido vivo”, em português.

No início de novembro, o canal anunciou que o explorador e naturalista Paul Rosolie seria engolido vivo por uma sucuri gigante em um programa a ser exibido nos Estados Unidos em 7 de dezembro (no Brasil, estava previsto para fevereiro de 2015).

O simples anúncio do Discovery já produziu notícias em todo o mundo. A imaginação do público foi a mil com o “teaser” divulgado pelo canal, mostrando Rosolie e sua equipe capturando a anaconda no meio da floresta amazônica, enquanto a narração prometia “um programa que não se vê sempre”.

Novos hábitos

Organizações ambientalistas e de proteção aos animais, como a Peta, protestaram: “Anacondas passam dias sem comer e gastam a energia necessária para fazer isso de forma seletiva. Fazer essa cobra usar a energia para engolir esse idiota e, em seguida, possivelmente, regurgitá-lo vai deixar o pobre animal exausto e privado da energia que ele precisa”.

Naturalmente, os protestos da Peta foram ignorados. Mas quem riu por último foram os militantes em defesa da cobra.

O especial “Eaten Alive”, com duas horas de duração, se revelou uma fraude. Depois de 90 minutos mostrando a preparação para o grande momento, o público viu Rosolie pedir socorro a seus assistentes e cancelar a ação final.

Com câmeras acopladas e um traje especial, que permitiria que sobrevivesse caso fosse engolido, o explorador foi mordido pela cobra e decidiu abortar a cena. “Preciso de ajuda. Não estou sentindo meus braços”, disse.

O engodo foi um dos principais assuntos da noite de domingo (7) nas redes sociais nos Estados Unidos e, no dia seguinte, tema de noticiários na CNN e piadas em alguns dos melhores “talk shows”. Stephen Colbert falou em “ultraje” no seu “Colbert Report”.

Com 4,1 milhões de espectadores, “Eaten Alive” foi um sucesso em matéria de audiência. O preço que a Discovery pode pagar pela decepção que causou ainda não foi calculado.

Mas o incidente diz muito do estado de ansiedade dos executivos de televisão com os novos hábitos dos espectadores. Diante das muitas possibilidades de gravação de programas e de TV à la carte, o desafio de manter o público na frente da televisão, vendo a programação e os anúncios que as emissoras querem, exige muita criatividade. O perigo é recorrer a ideias de homens como Chuck Tatum.

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Mauricio Stycer, da Folha de S.Paulo