Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Autor aposta no fim da TV tradicional

Depois de 31 anos de trabalho na Globo, onde escreveu novelas de sucesso como “Bebê a bordo” (1988), “Quatro por quatro” (1994) e “Uga uga” (2000), Carlos Lombardi causou alarde em 2012 quando transferiu-se para a Record. Grande contratação da teledramaturgia da emissora dos últimos anos, o autor, de 56 anos, estreou no canal com “Pecado mortal”, encerrada em maio deste ano. A trama de época retratou a ascensão do tráfico de drogas no Rio de Janeiro nos anos 1970, uma mudança significativa de universo em relação às tramas que costumava escrever para o horário das 19h. Nesta entrevista, parte de uma série de conversas com autores iniciada pela Revista da TV em janeiro, Lombardi fala sobre a mudança, relembra momentos marcantes da carreira e opina sobre a situação atual do mercado audiovisual.

O que está fazendo após “Pecado mortal”?

Carlos Lombardi – Não posso negar que um pedaço da minha cabeça já está pensando na próxima novela. Mas tem coisa antes. Uma proposta de minissérie que pode vir a sair, mas estou proibido de falar, porque existe uma pendência jurídica: há quem ache que o original está em domínio público; há quem ache que não. Mas é uma adaptação, e de autor estrangeiro. Também tenho um projeto paralelo à Record, um seriado para a TV a cabo. É uma ideia antiga que agora consegui formatar e vou começar a bater em portas. É sobre futebol. Também comprei os direitos de uma peça chamada “Design for living”, que estou traduzindo e adaptando.

“Pecado mortal” marcou a sua estreia na Record. Como avalia a trama? Fez a novela que queria?

C.L. – Se eu pensar do começo de uma sinopse até o fim, nunca a novela sai exatamente o que você pensou antes. Às vezes fica melhor, inclusive. Foi uma experiência gostosa porque pude trabalhar em outro horário, outro registro. Embora eu nem ache o registro tão diferente assim. Tenho uma opinião sobre o meu trabalho diferente do senso comum. As pessoas falam que escrevo comédias, mas sempre escrevi comédias dramáticas. Minhas histórias tem um ponto de vista melodramático. O que fiz em “Pecado mortal” foi mudar o percentual do mix. Tinha um pouco de comédia, mas aumentei a dosagem do drama. Foi bom também tratar de temas mais pesados, dos quais eu nunca pude tratar antes, como o tráfico de drogas.

Por que não podia tratar?

C.L. – A gente tem um dado muito ruim na TV atualmente, essa questão da classificação indicativa. Ela deixou tudo muito restritivo. Há uns 3 anos, quando “Quatro por quatro” passou no Viva, as pessoas falavam: “Meus Deus, isso era censura livre?”. Pois é, era. E não aconteceu nada. A sociedade não se esborrachou, a família não acabou. Pelo contrário, minhas novelas são bem conservadoras, sempre tratam da família como base. Acho que sou careta o suficiente para fazer horário livre, mas o país e a posição do governo mudaram.

É só a classificação ou o público ficou mais conservador também?

C.L. – O público pode ser um pouco mais, mas o governo é pior. A classificação indicativa é mais careta que o público. Aprendi uma coisa com um trabalho muito bom de um dos nossos melhores autores que sofreu rejeição do público: “O dono do mundo”, do Gilberto Braga. Quando você passa da moral média do público, ele rejeita. Não precisava ter o governo se metendo nisso. A novela se autorregula porque depende da aprovação do público. A gente tem leis no país, se alguém quiser, processa a gente pelo que coloca no ar. E as emissoras são redes sérias, têm um departamento que revisa tudo antes de ao ar. Acho mesmo que as novelas deram uma abobada por causa da regulação do governo.

Você chegou à Record como uma grande contratação. Isso trouxe mais pressão ou mais liberdade?

C.L. – Eu tive mais liberdade porque, como você tem uma estrutura menor, para chegar no chefe eram duas portas. Ter contato direto com a chefia resolve coisas. Não tinha pressão, ninguém me encheu o saco. A Globo aumentou o horário da novela e isso atrapalhou a nossa audiência.

Como assim?

C.L. – Antes de “Pecado mortal” estrear, estava no ar na Globo a novela da Gloria Perez (“Salve Jorge”), que terminava às 22h15. Eu estava acompanhando, cronometrando. Nosso horário dependia dessa virada. Aí veio a novela do Walcyr Carrasco (“Amor à vida”) e ficava no ar até às 23h. Foi quando a gente experimentou jogar em cima, no mesmo horário da novela deles. A gente sabia que ia perder. Mas eles diziam: “Se é pra perder, vamos perder no horário mais caro” (risos). A audiência não mudou, mas o faturamento, sim. Eu sabia que ia ser jogo duro, ninguém esperava um milagre. Por outro lado, há anos eu não tinha críticas tão boas.

Como é sua rotina quando está escrevendo uma novela?

C.L. – Trabalho todas as horas do dia. Não tenho rotina, tenho ausência de vida. Porque eu não gosto de equipe grande, de novela de comitê. Nada contra quem gosta, é uma coisa minha. Também não escrevo sozinho. Mas gosto de colaborador só para inventar a história. Eu gosto de escrever os capítulos. Tem vezes que só sei como vai ser o final de um capítulo dependendo de determinada cena. Enfim, não dá para ter vida normal. Sou centralizador, não estou nesse trabalho para bater ponto. Gosto de fazer do meu jeito.

Quais foram os grandes acertos da sua carreira?

C.L. – Se pensar em termos numéricos, acho que o maior sucesso foi “Quatro por quatro” e o segundo foi “Uga uga”. Essas duas foram arrasa-quarteirão. “Quatro por quatro” foi ótima, era uma novela para a qual ninguém dava a mínima. O Boni (então Vice-presidente de Operações da Globo) voltou de férias e falou: “Que novela é essa que não tem ninguém conhecido, gente?”. Queria parar tudo, trocar todo mundo. Aí mostramos as cenas e ele relaxou. Para não dizer que não mexeu em nada, mandou regravar cenas da Betty Lago porque não gostou do cabelo. E, segundo a própria Betty, estava certíssimo (risos).

Lembra-se de outras?

C.L. – As novelas pelas quais ninguém dava nada são as de que mais me recordo. “Bebê a bordo” também. Tinha a nítida impressão de que o Daniel (Filho, então diretor da Central Globo de Produção) não gostava. Foi a novela em que mais tive medo na vida. Chegou ao capítulo 50, e eu não sabia mais o que fazer. Mas passou e escrevi 210 capítulos. “Pé na jaca” (2006) tem uma história engraçada. Estava num momento de crise, não queria mais fazer novela. Alguém disse: “Pede emprego para o seu sogro, que é dono de fazenda”. E surgiu a ideia. O que aconteceria se eu fosse parar num ambiente rural? Aí conseguiria fazer uma novela de cidade pequena. O protagonista era um operador da bolsa quebrado, era um olhar de fora. É uma novela de que gosto muito, é a que considero mais madura das minhas comédias. Acho que é o primeiro trabalho que posso dizer: “Nossa,  adulto já”. Estava entendendo mais de gente, consegui falar mais de afeto. Foi um bom ensaio para “Pecado mortal”. E, bom, era uma novela de alguém que já tinha feito bastante terapia (risos).

E em que trabalhos errou?

C.L. – “Vira lata” (1996) foi uma catástrofe. Vi o primeiro capítulo no ar e falei: “Tá errado”. Mas aprendi muito, foi a novela que mais me ensinou. Só consegui dar uma virada no capítulo 60, porque tudo que tentei antes não funcionou. Havia uma rejeição à mocinha. Não tinha liga da Andréa (Beltrão) com o Humberto (Martins), não sei se as pessoas tinham uma imagem da Andréa de comediante demais. Mas o erro foi meu, não dela. Eu não construí bem o personagem. A novela só subiu quando transformei a Carolina Dieckmann em mocinha.

Você lançou muitos atores em suas novelas. Como era esse processo?

C.L. – Muita gente tem preconceito com comédia. Por isso, muitas vezes não era fácil ter o melhor elenco da casa, não. Deus sabe quantas vezes eu pedi o (Antonio) Fagundes. Não que ele tenha dito não para mim, o convite nem chegava a ele. Nenhuma das protagonistas de “Quatro por quatro” foi a primeira atriz escolhida. E as quatro fizeram muito bem. Foi ali que perdi o medo de arriscar em gente nova. Descobri que atores melhoram, crescem, aprendem. Os que querem. É engraçado, tem muitas grandes estrelas da Globo com quem nunca trabalhei, mas conheço gente em todos os escalões. E nunca tive problema com isso.

Se incomoda com o rótulo dos descamisados nas suas novelas?

C.L. – No começo eu não entendia. Porque me incomoda uma coisa ao contrário: em novela brasileira, as pessoas discutem divórcio de salto alto. Se é núcleo rico, ninguém tira o sapato, ninguém tira a gravata. Isso é tão brega! E novela passada no Rio de Janeiro, esse calor… Quando eu escrevia “Quatro por quatro”, meu carro não tinha ar condicionado. Tirava a camisa, ia dirigindo, e colocava de volta ao chegar à Globo. Senão chegava fedendo na reunião com a chefia. Então reclamar de gente sem camisa no Rio? Mas hoje não ligo. Falo: agora também, até se fizer novela no Alasca eu vou colocar uma sauna! Isso é coisa de jornalista que não assiste a novela e precisa inventar rótulo. Eu tenho qualidades maiores e defeitos maiores. Não dói quando alguém descobre de verdade uma falha no texto, porque você reconhece. Agora, quando pegam essas merrecas é muito chato.

Como avalia a diminuição de audiência da TV aberta?

C.L. – A audiência vai ser menor daqui para frente porque há cada vez mais opções. Mas a ficção vai continuar, ela está num boom. Estamos num ano em que a TV americana está revertendo a quantidade de realities e voltando a produzir mais dramaturgia. É o melhor momento da TV como produtora de ficção, exatamente pela liberdade da TV a cabo, do Netflix. A impressão que tenho é que, daqui a pouco, não vai ter mais televisão.

Como assim?

C.L. – Acho que a TV nesse sentido de redes não vai durar para sempre. Vai virar cardápio, tipo a Netflix. Acho que vai chegar um momento em que, no domingo, estarão disponíveis os cinco capítulos da semana da novela. O conteúdo vai ter que ficar um pouco mais direto e menor. Acho que isso passa pela diminuição das novelas. Mas folhetim ainda tem lugar, as pessoas gostam. “Revenge” é o quê? Uma novela com intervalos. Eu sempre disse: se novela tivesse temporada, dava para fazer muita coisa. Algumas novelas podiam ser maiores, mas com dois meses de descanso para todo mundo. Depois do capítulo 150, o que vai para o ar já é milagre. Está todo mundo no osso.

Essa diminuição do número de capítulos das novelas é uma reivindicação que tem sido feita por muita gente…

C.L. – A gente precisa fazer o gênero ser um pouco mais sobrevivível. É ruim quando você tem um monte de ator que não quer mais fazer novela porque é muito pesado. É nossa grande indústria cultural. Hoje grava-se muito mais devagar porque o nível de exigência em termos de luz, acabamento, mudou. Então a saída encontrada foi gravar com cinco frentes, mas aí precisa ter muito coadjuvante. A novela também ficou descentralizada. É preciso fazer uma matemática aí, mas acho que é possível ter novelas de 30 personagens com menos capítulos e ser viável economicamente.

As séries são uma boa para a dramaturgia brasileira?

C.L. – Sim, temos que descobrir uma maneira de viabilizar o seriado. O problema é que as séries que tenho visto, tirando exceções, são muito fracas de roteiro. Mas a economia mudou e essas linhas de produção agora também envolvem a televisão. É muito importante profissionalizar o seriado, parar de ser feito amadoristicamente. Agora, tem uma coisa: as produtoras precisam entender que um bom roteirista não pode ser 1% do custo do episódio. Temos que fazer mais seriados ou vamos perder participação no mundo, no mercado.

Você gosta de séries, de quadrinhos, cultura pop. Acha que isso pode influenciar as novelas?

C.L. – Claro! Porque os bons trabalhos nessas áreas têm características em comum. Para mim, a morte da Gwen Stacy — esqueça os filmes do Homem-Aranha, aquilo é um horror! (risos) — é um grande momento do melodrama. Veio em quadrinhos. Um momento tão importante da cultura pop é aquele em que o barco de Ruth e Raquel (da novela “Mulheres de areia”) vira e você não sabe qual das duas está viva. Ou no cinema, em que Sofia tem que escolher entre o filho e a filha (no filme “A escolha de Sofia”). Ou no teatro, quando você fica sabendo que o Hamlet não está doido. Esses grandes momentos da dramaturgia existem nos quadrinhos, na novela, no teatro do século XV, e vão continuar existindo. As pessoas gostam de um folhetim.

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Thaís Britto, do Globo