Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Muitas armadilhas

Como não gostar de um cara que sacou que “a crase não foi feita para humilhar ninguém”?

Como não ficar amigo de um sujeito que te acompanha há 53 anos? Nem sempre de perto, é verdade, pois o exílio, como diria o Conselheiro Acácio, afasta as pessoas, e Ferreira Gullar viveu compulsoriamente longe das aves que aqui gorjeiam durante sete ou oito anos. Relação sui generis, a nossa. Começou com uma espinafração; dele em mim, claro; merecida, por sinal.

Em 1961, Gullar já era um poeta admirado e um jornalista de primeira ordem, atuante no espaço de maior prestígio intelectual da imprensa carioca, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB, que apesar do nome circulava aos sábados), e eu, um pobre pierrô. Aos 19 anos, noviço no ofício e aninhado em dois veículos, o Segundo Caderno do Correio da Manhã e a página de arte do semanário estudantil O Metropolitano, cometi dois artigos, um em cada jornal, que, de tão equivocados, despertaram a atenção do Gullar, então editor anônimo de uma seção de página inteira do SDJB, intitulada Tabela. Nela, o poeta comentava e resumia o que mais o interessara nas páginas literárias dos concorrentes.

No primeiro artigo eu defendia o sentimentalismo do cineasta John Ford; no segundo, extravasava meu fascínio por filmes ambientados em praias e mares, como Bom-dia, Tristeza e o recém-lançado O Sol Por Testemunha. Gullar triturou ambos, com piedosa elegância. No fundo, seu piche mais me envaideceu que machucou.

Naquela época, a figura de Gullar me intimidava; em parte pelo que ele era e representava, em parte por sua aparência severa, por seu jeitão taciturno, por seu “perfil moicano”, na definição tranchã do poeta paraibano Salomão Rovedo. Seu afamado pavio curto (reza o folclore que, num momento de irritação, de resto, justificável, ameaçou atirar uma máquina de escrever pela janela da antiga redação do JB, na Avenida Rio Branco) contribuiu para intensificar meu medo, que aos poucos e à distância se desfez, coagulado por uma amizade ironicamente consolidada numa praia, a de Ipanema.

Passamos pelas mesmas redações, mas sempre em ocasiões diferentes. Redações da grande imprensa, quero dizer. Na primeira metade dos anos 1970, quando editava as Dicas do Pasquim, Jaguar lançou no jornal um novo e desconhecido colaborador. Era Gullar, do exílio na Argentina, escrevendo com o nom de plume de Frederico Marques, já que qualquer texto assinado com o nom de plume com que José de Ribamar Ferreira Gullar se consagrara seria vetado pelos censores da ditadura. Nenhum dos catões fardados que sem piedade metiam a caneta Pilot nos originais semanalmente submetidos ao Centro de Informações do Exército, em Brasília, percebeu a caçoada onomástica: Frederico (como Engels), Marques (como Karl).

Noite veloz

Acumulando, nesse período, meu trabalho no Pasquim com a editoria de cultura do semanário Opinião, acertei com Gullar uma colaboração regular sobre arte e literatura, cujos proventos seriam depositados na conta bancária de sua mulher, Thereza Gullar, residindo no Rio. Opinião também estava sob censura prévia, mas como os textos de Gullar não versavam sobre política, arrisquei enviá-los sem assinatura para os censores e na gráfica acrescentar-lhes o nome do poeta. Os milicos nunca se deram conta da burla. E assim foi que Gullar, com sua verdadeira identidade, remediou o miserê em Buenos Aires, onde sobrevivia traduzindo e dando aulas de português.

Aí veio o “Poema Sujo”. Eram 52 laudas datilografadas que mexeram com Vinicius de Moraes “até a medula”. Vinicius foi o primeiro a ouvi-lo, na voz do autor, numa fita cassete, em outubro de 1975, e também seu portador até a editora Civilização Brasileira. Sua primeira edição, lançada na extinta livraria Muro, na Praça General Osório, Ipanema, foi uma festa sem a presença do autor, ainda exilado, mas com vários de seus amigos (entre outros, Mário Lago, Mario da Silva Brito, Guguta e Darwin Brandão, Ziraldo, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Bete Mendes, Zuenir e Mary Ventura), mais este que vos fala. Há registro fotográfico do momentoso evento.

Festa maior ainda seria montada, no ano seguinte, em outra extinta livraria ipanemense, a Francisco Alves, já com Gullar na terra. A certa altura, cansado de tanto fazer dedicatórias, o poeta ergueu-se da mesinha onde fora instalado, deu uma espreguiçada felina, puxou-me de lado e perguntou: “Pelo amor de Deus, quem é aquela mulher lá? O rosto dela me é familiar, mas não a estou reconhecendo.” Era a quinta ou sexta pessoa na fila de autógrafos. “É a Norma Bengell”, respondi. “Ainda bem que perguntou, pois a vaidade dela não suportaria não ser reconhecida por você”, acrescentei. (Em 1977 as livrarias não tinham o hábito de identificar os compradores em cada exemplar a ser autografado.)

Com a volta de Gullar, teve início nossa amizade praieira. Fazíamos ponto aos sábados e domingos, num trecho defronte a Rua Farme de Amoedo, autodenominado Cemitério de Elefantes por causa da frequência maciça de velhos companheiros ligados ao mundo do samba, do jornalismo e ao Partidão, a que o poeta se filiara em 1º de abril de 1964, mas do qual se afastara havia um bom tempo. A disposição das cadeiras de lona formando um círculo que se ampliava à medida que os demais banhistas da turma iam chegando nos dava a aparência de uma tribo, impressão por certo reforçada pela figura do pajé Gullar.

Já naquela época, os “elefantes” comunas lhe cobravam a amizade com o conterrâneo, amigo de juventude e xará José de Ribamar Ferreira Sarney, aporrinhação que quase resultou em briga depois de Sarney assumir a presidência. Outras cobranças lhe fizeram, como, por exemplo, colaborar com publicações conservadoras, e ele a explicar, pacientemente, que não as editava nem escrevia seus editoriais.

Conversávamos sobre assuntos menos ásperos e mais nobres: Volpi, histórias de Mário Pedrosa, do concretismo, do SDJB e do Centro Popular de Cultura, sobre Um Corpo Que Cai – por incrível que pareça, o filme de Hitchcock tem em Gullar um admirador quase tão devoto quanto eu. Se ainda fôssemos juntos à praia, nossa conversa ainda giraria em torno de temas como esses (e de gatos, claro), não de PT, Dilma e outras recentes controvérsias em que se viu envolvido, às vezes de forma leviana e grosseira, por avatares digitais do PC analógico.

Mais respeito com o poeta, o artista plástico e o intelectual Ferreira Gullar. Deixem-no em paz na Academia, que o merece mais do que ele dela necessita. Para meu gosto, não teria entrado na vaga do poeta Ivan Junqueira, mas na do outro José Ribamar da casa. Infelizmente, como alertou o poeta dentro da noite veloz, “no mundo há muitas armadilhas”.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo