Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O jornal que foi do humor à perseguição política

A mídia alternativa brasileira ganha uma importante referência, agora digitalizada, com a doação do acervo do jornal Binômio – Sombra e Água Fresca por um de seus idealizadores, o jornalista José Maria Rabêlo. A digitalização foi realizada pela Universidade Federal de Minas Geral (UFMG) com a ajuda do jornalista de 86 anos, que doou as mais de 800 edições da publicação para a universidade.

A ação será comemorada na terça-feira 9, às 10 horas, na sede da biblioteca da UFMG, e contará com a presença de Rabêlo. Com 86 anos, o jornalista teve a vida marcada pelo jornalismo independente e pela perseguição política, que o fez ficar 15 anos no exílio.

O Binômio surgiu em Minas Gerais, em 1952, como uma brincadeira de estudantes, quando Rabêlo e seu sócio, o jornalista Euro Arantes, tinham 22 e 23 anos, respectivamente. Com forte teor humorístico, o jornal ganhou força por conta do “governismo” da mídia mineira na época em que Juscelino Kubitschek era governador do estado. “Era um escândalo, a imprensa era controlada pelo estado e não saía nada”, relata Rabêlo.

O nome do Binômio faz referência a um programa de governo de JK, na época batizado de “Binômio de Energia e Transporte”. “Para confrontar o ‘Binômio da Mentira’, como chamávamos este programa, lançamos o ‘Binômio da Verdade: Sombra e Água Fresca’. Foi um sucesso.”, lembra o jornalista. “Com uma linguagem muito independente, até com certo exagero, saímos contestando toda aquela política.”

Tudo destruído

Nos seus 12 anos de publicação, o Binômio chegou a uma tiragem de 60 mil exemplares, com alcance além de Minas Gerais, segundo Rabêlo. “No primeiro número foram umas quatro paginazinhas, muito mal impressas, com dois mil exemplares. Vendeu tudo. Tivemos que tirar mais dois mil.”

Da fase humorística, o Binômio passou para um momento mais combativo em 1956. “Depois do governo de JK, entrou um governador muito retrógrado e conservador, o Bias Fortes. Então, passamos a fazer um jornal mais panfletário, dos mais bravos.” A partir dali, o Binômio encontrou dificuldades para circular. “As gráficas de Minas não imprimiam mais o Binômio. Então, tivemos que ir para o Rio de Janeiro, fomos um jornal que teve que se exilar para sobreviver.”

Em 1958, o Binômio iniciou sua terceira e última fase, interrompida em 1964, não por acaso, o ano do golpe civil-militar no Brasil. Durante esses seis anos, o jornal se tornou um grande semanário. “Além do humor, apresentávamos denúncias e grandes reportagens, que abalavam o estado.” Foi nessa fase que o jornal sofreu seu empastelamento. “Estava na época já a conspiração golpista. Era o governo do Jango e a direita já se articulava”, recorda.

O Binômio virou alvo por fazer reportagem contra um general do Exército. “Foi nomeado um novo comandante das Forças Federais de Minas, o general João Punaro Bley. Ele deu, na ocasião, uma série de declarações anticomunistas, dizendo que o governo de Goulart era suspeito. Sabíamos que ele havia sido interventor do Estado Novo no Estado do Espírito Santo, que havia fechado jornais e comandado um campo de concentração para presos políticos. Fomos lá e fizemos um material impressionante”. Isso, segundo o jornalista, levou o general até a redação ameaçar os responsáveis pela publicação. “A publicação saiu no domingo. Na quarta-feira, ele apareceu no jornal, fardado e com o barrete metálico, para conversar com o diretor.”

A tentativa de intimidação, de acordo com Rabêlo, acabou em uma luta corporal envolvendo ele e Bley. “Ele questionou quem havia escrito aquela ‘merda’ sobre ele. Eu respondi: é uma reportagem muito fundamentada e eu sou responsável por tudo que sai publicado no jornal. Dito isso, ele me agarrou pelo pescoço. Eu sabia que ele já tinha feito isso com jornalistas no Espírito Santo. Mas eu era lutador de judô. Nós rolamos pelo chão.”

Binômio

Edição do jornal Binômio

 

A coragem de Rabêlo custou caro ao Binômio. “Três horas depois, chegaram uns 200 homens e destruíram tudo na redação. Eu já não estava lá, por sorte. Não ficou nada. Até as latrinas, destruíram tudo.” Segundo o jornalista, não só o enfrentamento do general Bley levou à perseguição, mas também o teor das notícias do jornal, que defendiam o legalismo e o governo de João Goulart. “Em 1964, fecharam o jornal e não pudemos circular mais”, relata.

Espaço para crescer

Após o incidente, o jornalista passou a ser visado e teve de se exilar. “No dia 29 de março, em Minas, puseram em prática a Operação Gaiola, para prender todas aquelas pessoas que tinham envolvimento na defesa do governo Goulart”, lembra. “Eu era um dos principais, porque o nosso jornal denunciava a conspiração contra o Jango, a traição do Magalhães Pinto, entre outros fatos.”

A sorte passou, então, a marcar a vida do jornalista e de sua família. “Nesse dia 29, às vésperas do golpe, saí para almoçar e, no preciso momento em que eu descia, oficiais subiam no outro elevador para me prender. Isso é cinematográfico. O porteiro Geraldino me disse: ‘ô Zé Maria, cai fora que os homens estão aí, te procurando’. Foi o conselho mais sábio que eu recebi na vida”, diz.

Rabêlo voltaria a viver outro afortunado desencontro quando se refugiou no Chile, nos anos 70. “Eu estava na primeira lista de procurados. Éramos 99 pessoas. A lista dizia assim: ‘As pessoas relacionadas têm o prazo de 24 horas para se apresentar ao Ministério da Defesa, sob pena de fuzilamento.’ Os oficiais chegaram na minha casa duas horas depois de eu ter saído.” O jornalista só voltaria a pisar no Brasil nos anos 80.

Como vanguarda, o Binômio discutia em suas colunas assuntos que não eram correntes na época, como a própria imprensa, a publicidade e os movimentos sociais. “Nós não nos inspirávamos em ninguém, buscávamos as nossas próprias soluções. Procurávamos fazer um jornalismo moderno, direto, claro, que explicasse ao leitor o que estava acontecendo.”

Tal preocupação com um jornalismo arrojado, segundo Rabêlo, falta hoje à mídia brasileira. Além disso, todos os jornais, na sua opinião, parecem falar dos mesmos assuntos. “As manchetes dos grandes jornais brasileiros são todas iguais. Uma vergonha, parece que todas vêm da mesma central de jornalismo. Isso não houve nem no tempo do Jango.” Para Rabêlo, ainda há espaço para o crescimento do jornalismo alternativo e a recuperação do Binômio ajuda a aumentar as referências para que os jornalistas busquem novas perspectivas. “Hoje, temos a internet. A grande mídia impressa e televisiva não fala mais sozinha”, acredita.

A coleção doada por Rabêlo ficará na Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras da biblioteca da UFMG. O lançamento oficial do material ocorre no Campus Pampulha da universidade, na Av. Antônio Carlos, 6627, 4º andar, em Belo Horizonte.

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Mariana Melo, da CartaCapital